domingo, 31 de julho de 2011

O homem comum - José Miguel Wisnik

O homem comum - JOSÉ MIGUEL WISNIK

O jogo alucinante entre Santos e Flamengo n
a Vila Belmiro me surpreendeu em pleno Rio de Janeiro. Eu saía de uma mesa-redonda sobre poesia e música popular na simpática Biblioteca Pública do Botafogo quando soube que estava um a zero para o Santos nos primeiros minutos de partida. Ao chegar no hotel já estava dois a zero. Segue-se o golaço de Neymar, o terceiro, ao vencer de uma maneira ou de outra sete adversários que participaram da jogada e dar um drible fora de todos os catálogos no momento decisivo do gol. Uma parada súbita e quase imperceptível em alta velocidade, com o pé direito em cima da bola, repuxando-a levemente para a esquerda, um toque de esquerda rapidíssimo em meia-lua e um complemento de bico por leve cobertura na saída do goleiro.

Esse raio poderia ter fulminado o rubro-negro, mas o primeiro tempo terminou três a três, e o Flamengo venceu por cinco a quarto. Não quero saber a opinião de retranqueiros e não me importa que o meu time tenha perdido. A taxa de faltas era baixíssima, e o que se via era futebol a olho nu, exposto, quase obsceno. Os dois times foram goleados, os dois times deram show. Sem aquela regulagem produtiva, aquele cauteloso pouco-a-pouco e aquela sabotagem medrosa que nos habituaram a ter que garimpar algum futebol no futebol. Me lembrei da minha infância, do sete a três do Santos sobre o Palmeiras em 1959, na mesma Vila Belmiro, e do cinco a um do Palmeiras sobre o Santos no Parque Antártica, naquele mesmo ano.

Se focarmos apenas nos protagonistas, sem analisar o jogo, pode-se dizer que Neymar veio com fome de bola extra, depois de ter tido o respiro de uns dias de folga (este ano ele mal teve férias no começo do ano , disputou o campeonato sul-americano sub-20, o campeonato paulista, a Libertadores e foi
para a Copa América). Jogou um futebol capaz de desmantelar qualquer adversário, não fosse o fato de Ronaldinho Gaúcho ter se reencontrado com Ronaldinho Gaúcho, nessa sua volta ao Brasil. O espetáculo das gerações que se viu na Vila Belmiro só foi possível graças ao encontro excepcional daquele que voltou com aquele que não foi. Pois, até pouco tempo, o imperioso seria que o Gaúcho ainda estivesse na Europa, e que Neymar já tivesse ido para o Chelsea no ano passado, perdendo-se, com isso, o sabor das alternâncias vivas e do confronto do nosso futebol com o nosso futebol. Que é, afinal, a melhor maneira de provar que ele existe.

Falando em provar que existe e em confronto com o espelho: o enigma do declínio precoce de Ronaldinho Gaúcho, o misterioso apagamento, que data de 2006, não da sua qualidade técnica, mas do seu brilho único, parecia ser justamente uma questão de autoidentidade frente ao fantasma do tempo. Como se ele não soubesse, já com certa antecedência, quem ser no final da carreira. Vale lembrar que o apogeu de Ronaldinho Gaúcho já era a saturação de uma cultura futebolística: ele é o ápice maneirista de todos os estilemas do futebol brasileiro, incluindo o drible, o chapéu, o calcanhar, a folha seca, a cavadinha, a matada, a pedalada, o elástico, o passe em concha, todos os tipos de trivelas e tudo o mais que se quiser. Para todos esses procedimentos é possível lembrar jogadas e gols antológicos. Como se ele desenvolvesse no futebol o princípio literário da citação em épocas tardias, citando, em ato, Pelé, Romário, Sócrates, Ademir da Guia. Ou seja, o seu apogeu já era “tardio”, não do ponto de vista individual, mas do ponto de vista da tradição que ele encarnava.

Se um fogo próprio imantava, alimentava e dava liga a tudo isso, o apagamento desse centro irradiador, seja ele explicável ou inexplicável, transformou-o, nunca num jogador qualquer, mas num espectro do seu fulgor, um fantasma dos seus múltiplos fantasmas. Pois o que se viu em Santos x Flamengo foi um Ronaldinho Gaúcho citando ele mesmo: a falta cobrada por baixo da barreira, como ele já tinhafeito no Barcelona , para quem não se lembrava, e o último gol do jogo, vindo como um raio da esquerda para dentro e fulminando o canto oposto do goleiro. Nesse caso, não apenas o gol decisivo de um jogo espantoso e de uma inacreditável virada, mas o ato confirmatório de uma espécie de afinal conquistada coincidência consigo mesmo.

Que estivéssemos em presença da explosão de uma supernova, e ao mesmo tempo do brilho vitorioso de uma grande estrela que cremos extinta, tudo isso deu ao jogo os aspectos de um mito, quando os enigmas do tempo nos aparecem como uma constelação. Por isso se dizia tanto, já durante o jogo, que ele era inesquecível, com todos os seus aspectos dramáticos, poéticos e patéticos. Como os vários erros das defesas, e como a cobrança do pênalti por Elano, que já queria se reabilitar por uma via inabitual das cobranças de pênaltis patéticas na Copa América. (Como diz o verso de Jorge Mautner, “Os erros e os defeitos cotidianos / fazem parte dos direitos
humanos”).

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