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sábado, 13 de abril de 2013

Artigo de Márcia Tiburi, originalmente publicado pelo Jornal do Margs, edição 103 (setembro/outubro).


Artigo de 
Márcia Tiburi, originalmente publicado pelo Jornal do Margs, edição 103 (setembro/outubro).
A diferença entre ver e olhar é tanto uma distinção semântica que se torna importante em nossos sofisticados jogos de linguagem tomados da tarefa de compreender a condição humana – e, nela, especialmente as artes –, quanto um lugar comum de nossa experiência. Basta pensar um pouco e a diferença das palavras, uma diferença de significantes, pode revelar uma diferença em nossos gestos, ações e comportamentos. Nossa cultura visual é vasta e rica, entretanto, estamos submetidos a um mundo de imagens que muitas vezes não entendemos e, por isso, podemos dizer que vemos e não vemos, olhamos e não olhamos. O tema ver-olhar – antigo como a filosofia e a arte – torna- se cada vez mais fundamental no mundo das artes e estas o território por excelência de seu exercício. Mas se as artes nos ensinam a ver – olhar, é porque nos possibilitam camuflagens e ocultamentos. Só podemos ver quando aprendemos que algo não está à mostra e podemos sabê-lo. Portanto, para ver olhar, é preciso pensar.
Ver está implicado ao sentido físico da visão. Costumamos, todavia, usar a expressão olhar para afirmar uma outra complexidade do ver. Quando chamo alguém para olhar algo espero dele uma atenção estética, demorada e contemplativa, enquanto ao esperar que alguém veja algo, a expectativa se dirige à visualização, ainda que curiosa, sem que se espere dele o aspecto contemplativo. Ver é reto, olhar é sinuoso. Ver é sintético, olhar é analítico. Ver é imediato, olhar é mediado. A imediaticidade do ver torna-o um evento objetivo. Vê-se um fantasma, mas não se olha um fantasma. Vemos televisão, enquanto olhamos uma paisagem, uma pintura.
A lentidão é do olhar, a rapidez é própria ao ver. O olhar é feito de mediações próprias à temporalidade. Ele sempre se dá no tempo, mesmo que nos remeta a um além do tempo. Ver, todavia, não nos dá a medida de nenhuma temporalidade, tal o modo instantâneo com que o realizamos. Ver não nos faz pensar, ver nos choca ou nem sequer nos atinge. As mediações do olhar, por sua vez, colocam-no no registro do corpo: no olhar – ao olhar - vejo algo, mas já vitimado por tudo o que atrapalha minha atenção retirando-a da espécie sintética do ver e registrando- a num gesto analítico que me faz passear por entre estilhaços e fragmentos a compor – em algum momento – um todo. O olhar mostra que não é fácil ver e que é preciso ver, ainda que pareça impossível, pois no olhar o objeto visto aparece em seus estilhaços de ser e só com muito custo é que se recupera para ele a síntese que nos possibilita reconstruir o objeto. É como se depois de ver fosse necessário olhar, para então, novamente ver. Há, assim, uma dinâmica, um movimento - podemos dizer - um ritmo em um processo de olhar-ver. Ver e olhar se complementam, são dois movimentos do mesmo gesto que envolve sensibilidade e atenção.
O olhar diz-nos que não temos o objeto e, todavia, nos dispõe no esforço de reconstituí-lo. O olhar nos faz perder o objeto que visto parecia capturado. Para que reconstituí-lo? Para realmente captura-lo. Mas essa captura que se dá no olhar é dialética: perder e reencontrar são os momentos tensos no jogo da visão. Há, entretanto, ainda outro motivo para buscar reconstruir o objeto do olhar: para não perder além do objeto, eu mesmo, que nasço, como sujeito, do objeto que contemplo – construo enquanto contemplo. Olhar é também uma questão de sobrevivência. Ver, por sua vez, nos liberta de saber e pode nos libertar de ser. Se o olhar precisa do pensamento e ver abdica dele, podemos dizer que o sujeito que olha existe, enquanto que o sujeito que vê, não necessariamente existe. Penso, logo existo: olho, logo existo. Eis uma formulação para nosso problema.
Mas se não existo pelo ver, não estou implicado por ele nem à vida, nem à morte. Ver nos distancia da morte, olhar nos relaciona a ela. O saber que advém do olhar é sempre uma informação sobre a morte. A morte é a imagem. A imagem é, antes, a morte. Ver não me diz nada sobre a morte, é apenas um primeiro momento. Ver é um nascimento, é primeiro. O olhar é a ruminação do ver: sua experiência alongada no tempo e no espaço e que, por isso, nos instaura em outra consistência de ser. Por isso, nossa cultura hipervisual dirige-se ao avanço das tecnologias do ver, mas não do olhar. É natural que venhamos a desenvolver uma relação de mercadoria com os objetos visualizáveis e visíveis. O olhar implica, de sua parte, o invisível do objeto: a coisa. Ele nos lança na experiência metafísica. Desarvoranos a perspectiva, perturba-nos. Por isso o evitamos. Todavia, ainda que a mediação implicada no olhar faça dele um acontecimento esparso, pois o olhar exige que se passeie na imagem e esse passear na imagem traça a correspondência ao que não é visto, é o olhar que nos devolve ao objeto – mas não nos devolve o objeto - não sem antes dar-nos sua presença angustiada.
O olhar está, em se tratando do uso filosófico do conceito, ligado à contemplação, termo que usamos para traduzir a expressão Theorein, o ato do pensamento de teor contemplativo, ou seja, o pensar que se dá no gesto primeiro da atenção às coisas até a visão das idéias tal como se vê na filosofia platônica. Paul Valéry disse que uma obra de arte deveria nos ensinar que não vimos aquilo que vemos. Que ver é não ver. Dirá Lacan: ver é perder. Perder algo do objeto, algo do que contemplamos, por que jamais podemos contemplar o todo. O que se mostra só se mostra por que não o vemos. Neste processo está implicado o que podemos chamar o silêncio da visão: abrimo-nos à experiência do olhar no momento em que o objeto nos impede de ver. Uma obra de arte não nos deixa ver. Ela nos faz pensar. Então, olhamos para ela e vemos.


Márcia Tiburi