terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Meu Deus, me dê a coragem - Clarice Lispector

Meu Deus, me dê a coragem
PRECE - Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. 
Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. 
Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. 
Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. 
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. 
Faça com que a solidão não me destrua. 
Faça com que minha solidão me sirva de companhia. 
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. 
Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. 
Receba em teus braços o meu pecado de pensar.
Clarice Lispector

sábado, 17 de janeiro de 2015

JORGE LUIS BORGES - O ALEPH (1949)

Lotus. Desenho vetorial. © Leonora Fink 



JORGE LUIS BORGES
O ALEPH
(1949)

Chego, agora, ao centro inefável de meu 
relato; 
começa, aqui, meu desespero de escritor. 
Toda linguagem é um alfabeto de símbolos 
cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham;
como transmitir aos outros o infinito Aleph
que minha temerosa memória mal consegue abarcar? 
Os místicos, em transe análogo,
multiplicam os emblemas: para significar a divindade, 
um persa fala de um pássaro que de alguma forma é todos os pássaros; 
Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em
toda parte e a circunferência em nenhuma;
Ezequiel, de um anjo de quatro faces que ao
mesmo tempo se volta para o oriente e para
o ocidente, para o norte e para o sul. 
(Não em vão rememoro essas inconcebíveis
analogias: alguma relação têm com o Aleph.)
Os deuses não me negariam, talvez, o
achado de uma imagem equivalente, mas
este informe ficaria contaminado de
literatura, de falsidade. Além disso, o
problema central é insolúvel: a enumeração,
mesmo parcial, de um conjunto infinito.
Naquele instante gigantesco, vi milhões de
atos deleitáveis ou atrozes; nenhum me
assombrou tanto como o fato de todos
ocuparem o mesmo ponto, sem
superposição e sem transparência. O que
meus olhos viram foi simultâneo: o que
transcreverei, sucessivo, porque a linguagem
o é. Algo, contudo, recuperarei.
Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma
pequena esfera furta-cor, de um fulgor quase
intolerável. No início, julguei-a giratória;
depois compreendi que esse movimento era
uma ilusão produzida pelos vertiginosos
espetáculos que encerrava. O diâmetro do
Aleph seria de dois ou três centímetros, mas
o espaço cósmico estava ali, sem diminuição
de tamanho. Cada coisa (a lâmina do
espelho, digamos) era infinitas coisas, porque
eu a via claramente de todos os pontos do
universo. Vi o mar populoso, vi a alvorada e a
tarde, vi as multidões da América, vi uma teia
de aranha prateada no centro de um negra
pirâmide, vi um labirinto truncado (era
Londres), vi intermináveis olhos imediatos
perscrutando-se em mim como num espelho,
vi todos os espelhos do planeta e nenhum
me refletiu, vi num pátio interno da rua Soler
as mesmas lajotas que trinta anos antes vira
no corredor de uma casa de Fray Bentos, vi
cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal,
vapor de água, vi convexos desertos
equatoriais e cada um de seus grãos de areia,
vi em Inverness uma mulher que não
esquecerei, vi a violenta cabeleira, o corpo
altivo, vi um câncer no peito, vi um círculo de
terra seca numa calçada onde antes havia
uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um
exemplar da primeira versão de Plínio, a de
Philemon Holland, vi ao mesmo tempo cada
letra de cada página (quando menino, eu
costumava me maravilhar com o fato de as
letras de um volume fechado não se
misturarem nem se perderem no decorrer da
noite), vi a noite e o dia contemporâneos, vi
um poente em Querétaro que parecia refletir
a cor de uma rosa em Bengala, vi meu quarto
sem ninguém, vi num escritório de Alkmaar
um globo terrestre entre dois espelhos
multiplicado infindavelmente, vi cavalos de
crina remoinhada numa praia do mar Cáspio
ao alvorecer, vi a delicada ossatura de uma
mão, vi os sobreviventes de uma batalha
enviando cartões-postais, vi numa vitrine de
Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras
oblíquas de algumas samambaias no chão de
um jardim de inverno, vi tigres, êmbolos,
bisões, marulhos e exércitos, vi todas as
formigas que há na Terra, vi um astrolábio
persa, vi numa gaveta da escrivaninha
(e a letra me fez tremer) cartas obscenas,
incríveis, precisas, que Beatriz enviara a
Carlos Argentino, vi um adorado monumento
na Chacarita, vi a relíquia atroz do que
deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo, vi
a circulação de meu sangue escuro, vi a
engrenagem do amor e a transformação da
morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no
Aleph a Terra, e na Terra outra vez o Aleph
e no Aleph a Terra, vi meu rosto e minhas
vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem e
chorei, porque meus olhos tinham visto
aquele objeto secreto e conjectural cujo
nome os homens usurpam mas que nenhum
homem contemplou: o inconcebível universo.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Lindolf Bell - O Código das Águas

Ah! Não fosse este rio chamado amor
O rio que conheço
não aprendi de livro nem de mapa inventado
Jamais escrevi em caderno
o nome deste rio
Nunca desenhei a giz
o movimento de suas águas
Sei deste rio
por seu silêncio
deste rio que ninguém me falou
Não surgiu de histórias passageiras
Não precisa de suborno para estar comigo
Nem de mentiras enfeitadas
sequer de afinidades sorrateiras
Este rio vem despojado de intransigências,
preconceitos,
perplexo no eterno desejo
Dádiva e dívida
comigo mesmo
E dos outros homens
Também a esmo
Flui em mim este rio sem vulgaridades
Atemporal, flui em mim com sabor de
paciência
e extraordinário sabor de nada
Nem sequer de buscas e tempo perdido
nem sequer de nada
Este rio nome secreto
e não
E corpo de rio
onde outros rios se vão
Porque o rio
é como o homem:
sem nome
mora no esquecimento,
sem corpo
é árvore cortada,
é menos que nada
Ah! Não fosse o amor sempre e de novo
a estação sem fim
Esta eterna duração
onde, quem passa, não passa,
floresce fácil,
flui
Ah! Não fosse este rio chamado amor
de peso feito, medida e saudade infinita
Não teria o homem medida
de sua própria medida finita
- Lindolf Bell, em "O Código das Águas”. 1ª ed., São Paulo: Global editora, 1984.

Rio una. 2010 © Leonora Fink

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A fotografia me enganou 3 vezes - por Clício Barroso Filho

A fotografia me enganou 3 vezes - por Clício Barroso Filho
“Quando me interessei por fotografia, bem cedo ouvi de todos a quem consultei, incluindo meu próprio pai, que o primeiro passo seria dominar a técnica. Uma tarefa que me parecia longa e complicada, apesar de fascinante e misteriosa. Teria que aprender tudo o que pudesse sobre câmeras: pequenos formatos, médios formatos, grandes formatos. 35mm, 6x6cm, 4x5pol.
Mas isso seria apenas o básico do básico: Era mandatório também saber tudo sobre lentes, elementos, grupos, objetivas, zooms, grandes-angulares, olhos-de-peixe, teleobjetivas, macros. Aberturas de diafragma, velocidades de obturador, ASA, DIN, foco, profundidade de campo, profundidade de foco, distância hiperfocal, básculas, química, física mecânica, óptica. Filmes, filtros, reveladores, ampliadores, papéis. Nomes estranhos como Leitz, Zeiss, Schneider, Angenieux, Nikkor.
E  não, não acabava por aí; havia que se conhecer de enquadramento; composição; iluminação; direção de modelos; ângulos; plongée e contre-plongée.
Claro que isso tudo só se aprende na escola, e foi exatamente para onde fui.
O professor de fotografia era formado em engenharia óptica na Alemanha. O professor de laboratório era engenheiro químico. Uma das maiores marcas da indústria emprestava seu nome à escola. Depois de quatro semestres suados, já trabalhando como assistente de fotógrafo e respirando fotografia 24/7, achei que poderia começar minha própria carreira e “virar” fotógrafo profissional.
E então, começaram os tombos.
“Sua fotografia é muito certinha, falta personalidade”, ouvia de um; “Essa luz é uma luz covarde” vinha outro me dizer.
E descobri da maneira mais difícil que me faltava conteúdo, vivência, conceito. Saber tudo sobre equipamento e como usá-lo não significava absolutamente nada; ter controle dos processos no laboratório também não.
O que dava era para viver de fotografia comercial, reproduzindo idéias dos outros e copiando em filme o que já havia sido criado anteriormente.
Reprodutor e plagiário!
Faltava ainda muita coisa.
Primeira mentira: “Fotografia é técnica.”
 Fui em busca daquilo que, pensava eu, iria modificar a minha fotografia.
Cultura fotográfica.
Comprei livros, todos os que pude. Viajei, e fui conhecer as galerias, os estúdios, os ateliers, os museus; Moma, Prado, Galleria degli Uffizi, NY Metropolitan, Guggenheim, MASP, Pinacoteca, MAM, Louvre, Musée de l’Orangerie,  Museu Calouste Gulbenkian, Museu Picasso, Museu de Atenas, Museu do Cairo, Capela Sistina, ICP.
Enxurrada de imagens, de estilos, de épocas, de assuntos, de técnicas. As rupturas, do expressionismo ao surrealismo ao cubismo ao abstrato de Pollock; a Pop Art de Warhol ironizando a cultura contemporânea do consumo. Me esforcei para entender muito do que não podia compreender, estudando, viajando mais, comprando mais livros. Vivi na América do Norte e na Europa, na tentativa de absorver por osmose a cultura visual de que precisava.
A boa notícia é que minha fotografia mudou. Aprendi a olhar para o mundo de forma menos formal. Minha fotografia já não era mais tão “certinha”, tão previsível, o que me garantia uma certa liberdade, e poder viver de uma fotografia editorial que incentivava, compartilhava e absorvia idéias menos convencionais, mais pessoais. Algumas tinham um ligeiro borrado, tremido intencional de baixa velocidade para simular movimento; outras um foco seletivo tão curto que as altas-luzes se misturavam em brilhos poéticos criando um efeito de “desfoque líquido” (como o definiu um amigo fotógrafo), e muitas em ângulos bastante inusitados que permitiam que o não-mostrado fosse fabricado pela mente do observador e se transformasse em imagem, ainda que etérea.
A partir dessa experiência preparei esse meu melhor material não-comercial e o apresentei as galerias e marchands, para expor onde fosse possível; o amadurecimento do trabalho me parecia suficiente para que as minhas “fotografias autorais” fossem aceitas de imediato.
Mas não foi bem assim.
Descobri da maneira mais difícil que me faltava pensamento, profundidade, história. Apesar da trajetória bem sucedida na fotografia editorial e da cultura visual adquirida que me permitia romper com os paradigmas da fotografia comercial tradicional, apenas técnica e olhar não significavam absolutamente nada.
Dava sim para continuar vivendo de uma fotografia comercial menos previsível, e também dava para ensinar um pouco do que já havia sido criado anteriormente, por artistas e fotógrafos relevantes. Mas não mais que isso.
Produtor e instrutor!
Faltava ainda muita coisa.
Segunda mentira: “Fotografia é só olhar.”
 Voltei para a escola.
O ambiente acadêmico, com seu lastro de pesquisa, de aprofundamento, suas referências, debates, palestras e simpósios só poderiam ajudar a desenvolver o pensamento fotográfico que me faltava. Apesar da surpresa inicial de constatar que a maioria absoluta dos mestres e doutores é incapaz de produzir uma única imagem decente (com raras e conhecidas exceções!), o pensar imagético me pareceu instigante, um desafio intelectual com passeios adoráveis pela filosofia, astronomia, psicologia, mecânica quântica, genética e poesia. A falta de imagens é largamente compensada pelos outros saberes, e a ausência da obrigatoriedade da fotografia aplicada, do ato fotográfico em si, é libertadora ao extremo.
Aqui cabem duas interrupções na linha de pensamento que estamos traçando;
1-) Não só os doutores em fotografia, mas também a grande maioria dos críticos, curadores, filósofos, galeristas e marchands é incapaz de fotografar sem que tentem justificar o injustificável com longos e indecifráveis textos, por vezes totalmente disassociados das imagens em questão. Claro, não são fotógrafos, e deles não se deve cobrar boas fotografias!
2-) A Academia nos dá disciplina, cultura adquirida, deadlines, referências, trabalho em equipe, discussões interessantíssimas, respaldo intelectual, e prestígio. É uma oportunidade que não deve ser desprezada por ninguém, mesmo que não se produza uma única fotografia durante o curso.
O ambiente acadêmico me permitiu sonhar mais, dedicar mais tempo a leitura, pesquisar mais profundamente, a respeitar pontos-de-vista diametralmente opostos aos meus. Além da leitura obrigatória dos autores fundamentais como Roland Barthes, Vilém Flusser, Susan Sontag, Walter Benjamin, Rosalind Krauss, Jean Baudrillard, Philippe Dubois, Arlindo Machado ou Boris Kossoy (dentre muitos outros), poder desfrutar da inteligência e sabedoria  de Helouise Costa, Rosely Nakagawa, Lucia Santaella, Simonetta Persichetti ou Annateresa Fabris (dentre muitas outras) é algo que não se esquece.
Mais uma vez a minha fotografia mudou; ganhou intenção, um pensamento prévio, tornou-se mais econômica e sintética; descolou-se dos aparelhos (técnica, equipamento, fetiches); desvencilhou-se dos truques fáceis (desfoques, movimentos desnecessários, tratamento de imagem). Pronto. Eu estava pronto para o sucesso. Mas….
Descobri da maneira mais difícil que as minhas imagens careciam de emoção, de contar uma história intrigante, eloquente ou socialmente relevante de modo não-linear, faltava nelas força política e de denúncia. Apesar de toda a cultura acadêmica, apenas técnica, olhar, pensamento, profundidade e história não significavam absolutamente nada.
Faltava ainda muita coisa.
Terceira mentira: “Fotografia é pensamento.”
Então…
Fotografia é emoção?
Fotografia é política?
Fotografia é documento?
Fotografia é construção de realidades?
Fotografia, agora todos já sabemos, pode ser muito complexa.
Ao substituir a pintura (que segundo muitos autores se auto-esgotou no século XX) como método visual preferencial de expressão artística contemporânea, a Fotografia pode ser  olhar, cultura, documento, expressão, linguagem, filosofia, técnica. Ou um pouco de tudo isso junto, em maiores ou menores porcentagens.
Essas três, ou cinco, ou doze mentiras só são mentiras quando tomadas isoladamente; quando somadas, deixam de sê-lo.
Se ouvimos fotógrafos falando em tom irônico de fotografias feitas por cegos, como por exemplo as de Evgen Bavcar, temos primeiro que entender a experiência vivenciada pelo Dr. Oliver Saks, descrita no livro “Um antropólogo em Marte“, de um seu paciente cego que tem sua visão cirurgicamente recuperada, mas ESCOLHE permanecer cego pois a sua maneira de “enxergar”o mundo lhe faz muito mais sentido do que aquela que a “visão” lhe trouxe.
 A partir do momento em que compreendi que todos os saberes possíveis não transformariam a minha fotografia em Arte, ela mudou novamente; agora fotografo o que quero, quando quero, do jeito que bem entendo. Mostro um pouco de mim, um pouco do mundo, construo realidades. Manipulo. Uso a técnica a meu favor. Desfoco. Foco. Sou livre com a minha maneira de olhar ou imaginar o que está ao meu redor.
Entendi, finalmente, que a minha fotografia é o que ela é.
Única, tão minha quanto a minha voz ou as minhas impressões digitais, e será considerada Arte quando alguém, que não eu, assim a enxergar.
Como me alertou mais de uma vez o meu amigo Pepe Mélega, não sou artista.
Sou fotógrafo.”