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domingo, 1 de abril de 2012

ANTONIN ARTAUD - VAN GOGH: O SUICIDADO DA SOCIEDADE

‎Não, Van Gogh não era louco, mas seus quadros eram misturas incendiárias, bombas atômicas...O que se entende por autêntico alienado? É um homem que prefere tornar-se louco - no sentido social da palavra - antes do que trair uma ideia superior da honra humana. Por esse motivo, a sociedade amordaça a todos aqueles de quem ela quer se livrar, ou só proteger, por terem se recusado a converter-se em cúmplices de certas imensas porcarias.


ANTONIN ARTAUD - VAN GOGH: O SUICIDADO DA SOCIEDADE

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Antonin Artaud

O que é um autêntico louco? É um homem que preferiu ficar louco, no sentido socialmente aceito, em vez de trair uma determinada idéia superior de honra humana. Pois o louco é o homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis.

⁠Antonin Artaud

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

PARA ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS - ANTONIN ARTAUD

Antonin Artaud


Este texto deve ser lido pensando-se na sua finalidade original: como suporte para uma transmissão radiofônica, uma leitura a quatro vozes entremeada de gritos, uivos, efeitos sonoros com tambores, gongos e xilofone. Talvez seja, de tudo que Artaud produziu, a realização mais próxima da sua concepção de Teatro da Crueldade.

 

O próprio Artaud participou da gravação, dizendo parte dos textos - junto com Roger Blin, Marie Casarès e Paule Thévenin - e cuidando dos efeitos sonoros, com enorme dificuldade, pois mal se sustentava em pé (ele teve que ditar deitado seus últimos textos, Suppôts et Supliciations). Segundo todas as testemunhas e o depoimento daqueles que ouviram a gravação, sua performance foi qualquer coisa arrepiante. 


Na véspera da data marcada para a transmissão - 2 de fevereiro de 1948 - Wladimir Porché, diretor da Radiodifusão Francesa, a proibiu. Fernand Pouey, diretor da programação literária da rádio e responsável pelo programa La Voix des Poètes, demitiu-se imediatamente. Foram feitas duas transmissões em circuito fechado, para intelectuais convidados que pediram sua liberação. O episódio teve uma enorme repercussão, gerando uma polêmica na imprensa: jornais conservadores, tipo Figaro, justificando a proibição; os setores mais avançados, contestando-a. 


O texto incluído na presente seleção corresponde ao programa propriamente dito e ao que foi publicado em 1948. Nas edições seguintes são acrescentados um texto sobre O Teatro da Crueldade, além de versões e variantes dos demais trechos, bem como um posfácio, canas e um dossier relatando a polêmica e transcrevendo alguns dos artigos. Há também um Post-Scriptum que é uma espécie de despedida de Artaud: 


Quem sou eu? / De onde venho? / Sou Antonin Artaud / e basta eu dizê-lo / como só eu o sei dizer e imediatamente / verão meu corpo atual / voar em pedaços /.e se juntar / sob dez mil aspectos / notórios / um novo corpo / no qual nunca mais /poderão / me esquecer. Este corpo novo e inesquecível é a própria obra de Artaud, já que sua intenção declarada era refazer-se, construir um novo corpo ao escrever sua obra e ao vivê-la de forma tão intensa e radical. 


A 25 de fevereiro de 1948 Artaud escreve para Paule Thévenin dizendo. Paule, estou triste e desesperado / meu corpo dói de alto a baixo / tenho a impressão que as pessoas se decepcionaram com a minha transmissão de rádio. / Onde estiver a máquina / estará sempre o abismo e o nada / há uma interposição técnica que deforma e aniquila o que fazemos ... / é por isso que nunca mais mexerei com o rádio / e de agora em diante me dedicarei novamente / ao teatro / tal como o imagino / um teatro de sangue / um teatro em que cada representação terá feito algo / corporalmente / para aqueles que representam e também para aqueles que vêm ver os outros representarem. Eu tive uma visão esta tarde - eu vi aqueles que me seguirão e que ainda não estão completamente encarnados porque os porcos, como aquele do restaurante de ontem à noite, comem demais Alguns comem demais - outros, como eu, não conseguem comer sem cuspir. / Todo seu / Antonin Artaud.

Poucos dias depois, a 4 de março, o jardineiro que trazia o café da manhã para Artaud o encontrou morto ao pé da cama. 


Para Acabar com o julgamento de Deus
kré Tudo isso deverá puc te
kré ser arranjado puk te
pek muito precisamente li le
kre numa sucessão pec ti le
e fulminante kruk
pte
Fiquei sabendo ontem
(devo estar desatualizado ou então é apenas um boato, uma dessas intrigas divulgadas entre a pia e a privada, quando as refeições ingurgitadas são mais uma vez devidamente expulsas para a latrina)
fiquei sabendo ontem
de uma das mais sensacionais dentre essas práticas das escolas públicas americanas
sem dúvida daquelas responsáveis por esse país considerar-se na vanguarda do progresso.
Parece que, entre os exames e testes requeridos a uma criança que ingressa na escola pública, há o assim chamado teste do líquido seminal ou do esperma,
que consiste em recolher um pouco do esperma da criança recém-chegada para ser colocado numa proveta
e ficar à disposição para experimentos de inseminação artificial que posteriormente venham a ser feitos.
Pois cada vez mais os americanos sentem falta de braços e crianças ou seja, não de operários
mas de soldados
e eles querem a todo custo e por todos os meios possíveis fazer e produzir soldados
com vista a todas as guerras planetárias que poderão travar-se a seguir
e que pretendem demonstrar pela esmagadora virtude da força
a superioridade dos produtos americanos
e dos frutos do suor americano em todos os campos de atividade e
da superioridade do possível dinamismo da força.
Pois é necessário produzir,
é necessário, por todos os meios de atividade humana, substituir a natureza onde esta possa ser substituída,
é necessário abrir mais espaço para a inércia humana,
é necessário ocupar os operários
é necessário criar novos campos de atividade
onde finalmente será instaurado o reino de todos os falsos produtos manufaturados
todos os ignóbeis sucedâneos sintéticos
onde a maravilhosa natureza real não tem mais lugar
cedendo finalmente e vergonhosamente diante dos triunfantes produtos artificiais
onde o esperma de todas as usinas de fecundação artificial
operará milagres na produção de exércitos e navios de guerra.
Não haverá mais frutos, não haverá mais árvores, não haverá
mais plantas, farmacológicas ou não, e conseqüentemente não haverá mais alimentos,
só produtos sintéticos até dizer chega,
entre os vapores,
entre os humores especiais da atmosfera, em eixos especiais de atmosferas extraídas violentamente e sinteticamente da resistência de uma natureza que da guerra só conheceu o medo.
E viva a guerra, não é assim?
Pois é assim - não é? - que os americanos vão se preparando passo a passo para a guerra.
Para defender essa insensata manufatura da concorrência que não pode deixar de aparecer por todos os lados,
é preciso ter soldados, exércitos, aviões, encouraçados,
daí o esperma
no qual os governos americanos tiveram o descaramento de pensar.
Pois temos mais de um inimigo
que nos espreita, meu filho,
a nós, os capitalistas natos
e entre esses inimigos
a Rússia de Stalin
à qual também não faltam homens em armas.
Tudo isso está muito bem
mas eu não sabia que os americanos eram um povo tão belicoso.
Para guerrear é preciso, levar tiros
e embora tenha visto muitos americanos na guerra
eles sempre tiveram enormes exércitos de tanques, aviões, encouraçados, que lhes serviam de escudo.
Vi as máquinas combatendo muito
mas só infinitamente longe
lá atrás
vi os homens que as conduziam.
Diante desse povo que dá de comer aos seus cavalos, gado e burros as últimas toneladas de morfina autêntica que ainda restam, substituindo-a por produtos sintéticos feitos de fumaça,
prefiro o povo que come da própria terra o delírio do qual nasceram,
refiro-me aos Taraumaras
comendo o Peiote rente ao chão
à medida que nasce,
que matam o sol para instaurar o reino da noite negra
e que esmagam a cruz pra que os espaços do espaço nunca mais possam encontrar-se e cruzar-se.
E assim vocês irão ouvir a dança de TUTUGURI.
TUTUGURI
O Rito do Sol Negro
E lá embaixo, no pé da encosta amarga,
cruelmente desesperada do coração,
abre-se o círculo das seis cruzes
bem lá embaixo
como se incrustada na terra amarga,
desincrustada do imundo abraço da mãe
que baba.
A terra do carvão negro
é o único lugar úmido
nessa fenda de rocha.
O Rito é o novo sol passar através de sete pontos antes de explodir no orifício da terra.
Há seis homens,
um para cada sol
e um sétimo homem
que é o sol
cru
vestido de negro e carne viva.
Mas este sétimo homem
é um cavalo,
um cavalo com um homem conduzindo-o.
Mas é o cavalo
que é o sol
e não o homem.
No dilaceramento de um tambor e de uma trombeta longa,
estranha,
os seis homens
que estavam deitados
tombados no rés-do-chão,
brotaram um a um como girassóis,
não sóis
porém solos que giram,
lótus d'água,
e a cada um que brota
corresponde, cada vez mais sombria
e refreada
a batida do tambor
até que de repente chega a galope, a toda velocidade
o último sol,
o primeiro homem,
o cavalo negro com um
homem nu,
absolutamente nu
e virgem
em cima.
Depois de saltar, eles avançam em círculos crescentes
e o cavalo em carne viva empina-se
e corcoveia sem parar
na crista da rocha
até os seis homens
terem cercado
completamente
as seis cruzes.
Ora, o tom maior do Rito é precisamente
A ABOLIÇÃO DA CRUZ
Quando terminam de girar
arrancam
as cruzes do chão
e o homem nu
a cavalo
ergue
uma enorme ferradura
banhada no sangue de uma punhalada.
A BUSCA DA FECALIDADE
Onde cheira a merda
cheira a ser.
O homem podia muito bem não cagar,
não abrir a bolsa anal
mas preferiu cagar
assim como preferiu viver
em vez de aceitar viver morto.
Pois para não fazer cocô
teria que consentir em
não ser,
mas ele não foi capaz de se decidir a perder o ser,
ou seja, a morrer vivo.
Existe no ser
algo particularmente tentador para o homem
algo que vem a ser justamente
O COCÔ
(aqui rugido)
Para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver
é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um OSSO,
é preciso não ter medo de mostrar o osso
e arriscar-se a perder a carne.
O homem sempre preferiu a carne
à terra dos ossos.
Como só havia terra e madeira de ossos
ele viu-se obrigado a ganhar sua carne,
só havia ferro e fogo
e nenhuma merda
e o homem teve medo de perder a merda
ou antes desejou a merda
e para ela sacrificou o sangue.
Para ter merda,
ou seja, carne
onde só havia sangue
e um terreno baldio de ossos
onde não havia mais nada para ganhar
mas apenas algo para perder, a vida.
o reche modo
to edire
de za
tau dari
do padera coco
Então o homem recuou e fugiu.
E então os animais o devoraram.
Não foi uma violação,
ele prestou-se ao obsceno repasto.
Ele gostou disso
e também aprendeu
a agir como animal
e a comer seu rato
delicadamente.
E de onde vem essa sórdida abjeção?
Do fato de o mundo ainda não estar formado
ou de o homem ter apenas uma vaga idéia do que seja o mundo
querendo conservá-la eternamente?
Deve-se ao fato de o homem
ter um belo dia
detido
idéia do mundo.
Dois caminhos estavam diante dele:
o do infinito de fora,
o do ínfimo de dentro.
E ele escolheu o ínfimo de dentro
onde basta espremer o pâncreas,
a língua,
o ânus
ou a glande.
E deus, o próprio deus espremeu o movimento.
É deus um ser?
Se o for, é merda.
Se não o for,
não é.
Ora, ele não existe
a não ser como vazio que avança com todas as suas formas
cuja mais perfeita imagem
é o avanço de um incalculável número de piolhos.
?O Sr. está louco, Sr. Artaud? E então a missa??
Eu renego o batismo e a missa.
Não existe ato humano
no plano erótico interno
que seja mais pernicioso que a descida
do pretenso jesus-cristo
nos altares.
Ninguém me acredita
e posso ver o público dando de ombros
mas esse tal cristo é aquele que
diante do percevejo deus
aceitou viver sem corpo
quando uma multidão
descendo da cruz
à qual deus pensou tê-los pregado há muito tempo,
se rebelava
e armada com ferros,
sangue,
fogo e ossos
avançava desafiando o Invisível
para acabar com o JULGAMENTO DE DEUS. 


CONCLUSÃO 


- E para que serviu essa emissão radiofônica, Sr. Artaud?
- Em primeiro lugar para denunciar um certo número de sujeiras sociais oficialmente sacramentadas e aceitas:


1º essa emissão do esperma infantil doado por crianças para a fecundação artificial de fetos ainda por nascer e que virão ao mundo dentro de um ou mais séculos.
2° para denunciar este mesmo povo americano que ocupou completamente todo o continente dos índios e que faz renascer o imperialismo guerreiro da antiga América, o qual fez com que o povo indígena anterior a Colombo fosse execrado por toda a humanidade precedente.
3° Sr. Artaud, que coisas estranhas o Sr. está dizendo!
4° Sim, estou dizendo coisas estranhas, pois contrariamente ao que todos foram levados a crer, os povos anteriores a Colombo eram estranhamente civilizados e isso pelo fato de conhecerem uma forma de civilização baseada exclusivamente no princípio da crueldade.
5° E o que, exatamente, vem a ser isso de crueldade?
6° Isso eu não sei responder.
7° Crueldade significa extirpar pelo sangue e através do sangue a deus, o acidente bestial da anormalidade humana inconsciente, onde quer que se encontre.
8° O homem, quando não é reprimido, é um animal erótico, há nele um frêmito inspirado, uma espécie de pulsação que produz inumeráveis animais os quais são formas que os antigos povos terrestres universalmente atribuíam a deus.
Daí surgiu o que chamaram de espírito.
Ora, esse espírito originário dos índios americanos reaparece hoje em dia sob aspectos científicos que meramente acentuam seu mórbido poder infeccioso, seu grave estado de vício, um vício no qual pululam doenças
pois, riam-se à vontade,
isso que chamam de micróbios
é deus,
e sabe o que os americanos e os russos usam para fazer seus átomos?
Usam os micróbios de deus. 


- O Sr. está louco, Sr. Artaud.
Está delirando. 


- Não estou delirando.
Não estou louco.
Afirmo que reinventaram os micróbios para impor uma nova idéia de deus.
Descobriram um novo meio de fazer deus aparecer em toda sua nocividade microbiana:
Inoculando-o no coração
onde é mais querido pelos homens
sob a forma de uma sexualidade doentia
nessa aparência sinistra de crueldade mórbida que ostenta sempre que se compraz em tetanizar e enlouquecer a humanidade como agora.
Ele usa o espírito de pureza de uma consciência que continuou cândida como a minha para asfixiá-la com todas as falsas aparências que espalha universalmente pelos espaços e é por isso que Artaud, o Momo, pode ser confundido com alguém que sofre de alucinações. 


- O que o Sr. Artaud quer dizer com isso? 


- Quero dizer que descobri a maneira de acabar com esse macaco de uma vez por todas
e já que ninguém acredita mais em deus, todos acreditam cada vez mais no homem.
Assim, agora e preciso emascular o homem. 


- Como? 


Como assim?
Sob qualquer ângulo o Sr. não passa de um maluco, um doido varrido. 


- Colocando-o de novo, pela última vez, na mesa de autópsia para refazer sua anatomia.
O homem é enfermo porque é mal construído.
Temos que nos decidir a desnudá-lo para raspar esse animalúculo que o corrói mortalmente,
deus
e juntamente com deus
os seus órgãos
Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força
mas não existe coisa mais inútil que um órgão.
Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos,
então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.
Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas
como no delírio dos bailes populares
e esse avesso será
seu verdadeiro lugar.


O SUICIDADO PELA SOCIEDADE - ANTONIN ARTAUD


Os corvos pintados por ele, dois dias antes da sua morte, não lhe abriram as portas de certa glória póstuma, como tampouco o fizeram suas demais telas, mas abrem para a pintura pintada, ou melhor, para a natureza não-pintada, a porta oculta de um mais-além possível, de uma permanente realidade possível através da porta aberta por van Gogh para um enigmático e sinistro mais-além.
Não é comum ver um homem, com o balaço que o matou já no seu ventre, povoar uma tela de corvos negros sobre uma espécie de campo talvez lívido, em
todo caso vazio, no qual a cor de borra de vinho da terra se confronta violentamente com o amarelo sujo do trigo.
Mas nenhum outro pintor além de van Gogh teria achado, como ele o fez para pintar seus corvos, esse negro de trufa, esse negro de ?banquete faustoso? e, ao mesmo, tempo, como que excremencial das asas dos corvos surpreendidos pelo resplendor declinante do crepúsculo.
E do que se queixa a terra sob as asas dos faustosos corvos, sem dúvida faustosos só para van Gogh, suntuosos augúrios de um mal que já não o afetará?
Pois ninguém, até então, havia conseguido converter a terra nesse trapo sujo empapado de vinho e sangue.
O céu do quadro é muito baixo, aplastrado,
violáceo como as margens do raio.
A insólita franja tenebrosa do vazio que se ergue atrás do relâmpago.
Van Gogh soltou seus corvos, como se fossem os micróbios negros do seu baço de suicida, a poucos centímetros do alto e como se viessem por baíxo da tela,
seguindo o negro talho da linha onde o bater da sua soberba plumagem acrescenta ao turbilhão da tormenta terrestre as ameaças de uma sufocação vinda do alto.
E contudo o quadro é soberbo.
Soberbo, suntuoso e sereno quadro.
Digno acompanhamento para a morte daquele que em vida fez girarem tantos sóis ébrios sobre tantos montões de feno rebeldes e que, desesperado, com um balaço no ventre, não poderia deixar de inundar com sangue e vinho uma paisagem, empapando a terra com uma última emulsão, radiante e tenebrosa, com sabor de vinho azedo e vinagre talhado.
Pois esse é o tom da última tela pintada por van Gogh, que nunca ultrapassou os limites da pintura e evoca os acordes bárbaros e abruptos do mais patético, passional e apaixonado drama isabelino.
É isso o que mais me surpreende em van Gogh, o mais pintor de todos os pintores e aquele que, sem afastar-se do que chamamos de pintura, sem sair dos limites do tubo, do pincel, do enquadramento do tema e da tela, sem recorrer à anedota, ao relato, ao drama, à profusa ação de imagens, à beleza intrínseca do assunto, conseguiu imbuir a natureza e os objetos de tamanha paixão que qualquer conto fabuloso de Edgar Poe, Herman Melville, Nathanael Haworthone, Gérard de Nerval, Achim von Arnim ou Hoffmann em nada superam, no plano psicológico e dramático, suas modestas telas,
telas que, por outro lado, são quase todas de reduzidas dimensões, como se respondessem a um propósito deliberado.
Uma lamparina sobre uma cadeira, um sofá de palha verde trançada,
um livro no sofá
e está revelado o drama.
Quem vai entrar?
Será Gaughin ou algum outro fantasma?
A lamparina acesa sobre a cadeira de palha verde indica, ao que parece, a linha de demarcação luminosa que separa as duas individualidades antagônicas de van Gogh e Gaughin.
Relatado, o motivo estético da sua divergência talvez não ofereça um grande interesse, mas serve para indicar a profunda divisão humana entre os temperamentos de van Gogh e Gauguin.
Penso que Gauguin achava que o artista deveria buscar o símbolo, o mito, ampliar as coisas da vida até o mito,
enquanto van Gogh achava que é preciso deduzir o mito das coisas mais modestas da vida.
De minha parte, penso que tinha absoluta razão.
Pois a realidade é tremendamente superior a qualquer história, a qualquer fábula, a qualquer divindade, a qualquer super-realidade.
Basta ter o gênio para saber interpretá-la.
O que nenhum pintor havia feito antes do pobre van Gogh,
o que nenhum pintor voltará a fazer depois dele,
pois acredito que desta vez,
hoje mesmo,
agora,
neste mês de fevereiro de 1947,
é a própria realidade,
o mito da própria realidade, da própria realidade mítica, que
está se encamando.
Assim, depois de van Gogh ninguém mais soube mover o grande címbalo, o acorde sobre-humano, perpetuamente sobre-humano pelo qual ressoam os objetos da vida real
quando se sabe aguçar suficientemente os ouvidos para escutar as ondas da sua maré crescente.
Assim ressoa a luz da lamparina, a luz da lamparina acesa sobre a cadeira de palha verde ressoa como a respiração de um corpo amante na presença de um corpo de enfermo adormecido.
Soa como uma estranha critica, um julgamento profundo e surpreendente cuja sentença van Gogh pode nos deixar adivinhar mais tarde, bem mais tarde, no dia em que a luz violeta da cadeira de palha tiver acabado de submergir o quadro.
E não se pode deixar de reparar nessa incisão de luz arroteada que morde as barras da grande cadeira turva, do velho sofá cambaio de palha verde, embora não seja percebida à primeira vista.
Pois o foco de luz está dirigido para outro lugar e sua fonte é estranhamente obscura, como um segredo do qual só van Gogh tivesse conservado a chave.
E se van Gogh não tivesse morrido com trinta e sete anos? Não chamo a Grande Carpideira para me dizer com quantas supremas obras-primas a pintura teria se enriquecido,
pois não consigo acreditar que depois dos Corvos van Gogh
viesse a pintar mais alguma coisa.
Penso que ele morreu com trinta e sete anos porque já havia, desgraçadamente, chegado ao término da sua fúnebre e revoltante história de indivíduo sufocado por um espírito maléfico.
Pois não foi por sua própria causa, por causa da doença da sua própria loucura, que van Gogh abandonou a vida.
Foi sob a pressão do espírito maléfico que, dois dias antes da sua morre, passou a chamar-se doutor Gachet, psiquiatra improvisado e causa direta, eficiente e suficiente da sua morte.
Quando releio as canas de van Gogh para seu irmão, convenço-me firmemente que o doutor Gachet, ?psiquiatra?, na verdade detestava van Gogh, pintor; e que o detestava como pintor e acima de tudo como gênio.
É quase impossível sr ao mesmo tempo médico e uma pessoa honesta, mas é escandalosamente impossível ser psiquiatra sem estar ao mesmo tempo marcado pela mais indiscutível loucura: a de ser incapaz de resistir ao velho reflexo atávico da multidão que converte qualquer homem da ciência aprisionado na turba numa espécie de inimigo nato e inato de todo gênio.
A medicina nasceu do mal, se é que não nasceu da doença e não provocou, pelo contrário, a doença para assim ter uma razão de ser; mas a psiquiatria nasceu da multidão vulgar de pessoas que quiseram preservar o mal como fonte da doença e que assim produziram do seu próprio nada uma espécie de Guarda Suíça para extirpar na raiz o espírito de rebelião reivindicatória que está na origem do gênio.
Em todo demente há um gênio incompreendido cujas idéias, brilhando na sua cabeça, apavoram as pessoas e que só no delírio consegue encontrar uma saída para o cerceamento que a vida lhe preparou.
O doutor Gachet não chegou a dizer a van Gogh que estava ali para endireitar sua pintura (como ouvi o doutor Gaston Ferdiére, médico-chefe do manicômio de Rodez, dizer que estava ali para endireitar minha poesia), porém mandava-o pintar a natureza, sepultar-se na paisagem pra evitar a tortura de pensar.
No entanto, assim que van Gogh voltava as costas, o doutor Gachet lhe fechava o interruptor do pensamento.
Como quem não quer nada, mas com esse franzir a cara aparentemente inocente e depreciativo no qual todo o inconsciente burguês da terra inscreveu a antiga força mágica de um pensamento cem vezes reprimido.
Fazendo assim, o doutor Gachet não só proibia os malefícios do problema,
mas também a inseminação sulfurosa,
o tormento da punção que gira na garganta da única passagem
com a qual van Gogh
tetanizado,
van Gogh suspenso sobre o abismo da respiração,
pintava.
Pois van Gogh era uma sensibilidade terrível.
Para convencer-se basta dar uma olhada no seu rosto, sempre ofegante e, sob alguns aspectos, também um enfeitiçador rosto de açougueiro.
Como o de um antigo açougueiro, agora tranqüilo e aposentado dos negócios, este rosto em sombras me persegue.
Van Gogh se auto-retratou em várias telas que, por melhor iluminadas que estivessem, sempre me deram a penosa impressão de que havia uma mentira ao redor da luz, que haviam retirado de van Gogh uma luz indispensável para abrir e franquear seu caminho dentro de si.
E esse caminho, certamente, não era o doutor Gachet o mais capacitado para indicá-lo.
Pois, como já disse, em todo psiquiatra vivente há um sórdido e repugnante atavismo que lhe faz ver em todo artista e todo gênio à sua frente um inimigo.
E sei que o doutor Gachet deixou para a história, com relação a van Gogh, atendido por ele e que terminou por suicidar-se na sua casa, a impressão de ter sido seu último amigo na terra, uma espécie de consolador providencial.
No entanto, estou cada vez mais convencido que é ao doutor Gachet de Auvers-sur-Oise que van Gogh ficou devendo aquele dia, o dia em que se suicidou em Auvers-sur-Oise;
ficou devendo, repito, ter deixado a vida,
pois van Gogh era uma dessas naturezas dotadas de lucidez superior, o que lhes permite, em qualquer circunstância, ver mais além, infinita e perigosamente mais além que o real imediato e aparente dos fatos.
Quero dizer mais além da consciência que a consciência habitualmente guarda dos fatos.
No fundo desses seus olhos sem pestanas de açougueiro, van Gogh dedicava-se incansavelmente a uma dessas operações de alquimia sombria que tomam a natureza como objeto e o corpo humano como vasilhame ou crisol.
E sei que o doutor Gachet sempre achou que isso cansava van Gogh.
O que no doutor não era o resultado de uma simples preocupação médica,
mas a manifestação de uma inveja tão consciente quanto inconfessada.
Pois van Gogh tinha chegado a esse estágio de iluminismo no qual o pensamento em desordem reflui diante das descargas invasoras da matéria
e no qual pensar já não é consumir-se
e nem sequer é
e no qual nada mais resta senão juntar pedaços do corpo, ou seja
ACUMULAR CORPOS
Já não é mais o mundo do astral, é o mundo da criação direta que é recuperado desse modo, mais além da consciência e do cérebro.
E nunca vi um corpo sem cérebro fatigar-se por causa de telas inertes.
Suportes do inerte - essas pontes, esses girassóis, esses teixos, esses olivais, essas pilhas de feno. já não se movem.
Estão congelados.
Porém, quem poderia sonhá-los mais duros sob o traço seco que põe a descoberto seu impenetrável estremecimento?
Não, doutor Gachet, uma tela nunca fatigou ninguém. São as forças de um louco em repouso, não transtornado.
Eu também estou como o pobre van Gogh: parei de pensar, mas a cada dia dirijo mais de perto formidáveis ebulições internas e gostaria de ver algum terapeuta qualquer vir repreender-me porque me fatigo.
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No momento de escrever essas linhas vejo o rosto vermelho ensangüentado do pintor vir na minha direção, numa muralha de girassóis eviscerados,
numa formidável combustão de fagulhas de jacinto opaco e relvas de lápis-lázuli.
Tudo isso no meio de qualquer coisa como um bombardeio meteórico de átomos em que cada partícula se destaca,
prova que van Gogh concebeu suas telas como pintor, apenas
e unicamente como pintor, mas um pintor que era
exatamente por isso
um formidável músico.
Organista de uma tempestade suspensa que ri na límpida natureza, uma natureza pacificada entre duas tempestades ainda que, como o próprio van Gogh, mostre claramente o que está para acontecer.
Depois de termos visto isso, podemos dar as costas a qualquer tela pintada que já não terá mais o que nos dizer. A tempestuosa luz das telas de van Gogh começa seu sombrio recitativo no momento exato em que deixamos de contemplá-la.
Exclusivamente pintor, van Gogh, e nada mais,
nada de filosofia, nada de mística, nada de rito, nada de psicurgia nem de liturgia,
nada de história, nada de literatura nem de poesia,
esses girassóis de ouro bronzeado são pintados; estão pintados como girassóis e nada mais, mas para entender agora um girassol natural, é obrigatório passar por van Gogh, assim como para entender uma tempestade natural,
um céu tempestuoso,
uma planície da natureza,
de agora em diante é impossível não voltar a van Gogh.
Uma tempestade como essa caía sobre o Egito ou sobre as planícies da Judéia semita;
talvez houvesse trevas semelhantes na Caldéia, Mongólia ou nas montanhas do Tibet, as quais, pelo que sei, continuam no mesmo lugar.
E, no entanto, quando contemplo essa planície de trigo ou pedra, branca como um ossário enterrado, sobre a qual pesa aquele velho céu violáceo,não consigo mais acreditar nas rnontanhas do Tibet.
Pintor, não mais que pintor, van Gogh adotou meios de pintura pura e nunca os degradou,
quero dizer que, para pintar, limitou-se a usar os recursos que a pintura lhe oferecia.
Um céu tormentoso,
uma planície branca como cal,
telas, pincéis, seus cabelos ruivos, tubos, sua mão amarela, seu cavalete,
ainda que todos os lamas do Tibet sacudam sob suas roupas o apocalipse que prepararam,
van Gogh nos terá feito sentir antecipadamente o cheiro do seu peróxido de nitrogênio numa tela que contém uma dose suficiente de catástrofe para obrigar-nos a nos orientar.
Um dia ele decidiu não degradar o tema;
mas, quando se vê um van Gogh, já não se pode acreditar que haja algo menos degradável que o tema do quadro.
Na mão de van Gogh, o tema de uma lamparina acesa num sofá de palha com uma armação violácea diz muito mais que toda a série das tragédias gregas ou dos dramas de Cyril Turner, de Webster ou de Ford que, além disso, até hoje não foram encenados.
Sem querer fazer literatura, é verdade que vi o rosto de van Gogh, vermelho de sangue na explosão das suas paisagens, vir a mim,
kohan
taver
tensur
purtan
num incêndio,
num bombardeio,
numa explosão
para vingar a pedra de moinho que o pobre van Gogh, o louco, teve que carregar durante toda sua vida.
O fardo de pintar sem saber por quê ou para quê.
Pois não é para este mundo,
nunca é para esta terra onde todos, desde sempre, trabalhamos, lutamos,
uivando de horror, de fome, miséria, ódio, escândalo e nojo e onde fomos todos envenenados, embora com tudo isso tenhamos sido enfeitiçados
e finalmente nos suicidamos
como se não fôssemos todos, como o pobre van Gogh, suicidados pela sociedade!

























Van Gogh diz a Theo, seu irmão antes de falecer, dois dias depois de disparar um tiro no próprio peito - La tristesse durera toujours - A tristeza durará para sempre.