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quinta-feira, 30 de abril de 2015

Mia Couto - em "Raiz de orvalho e outros poemas"

Promessa de uma noite
cruzo as mãos
sobre as montanhas
um rio esvai-se
ao fogo do gesto
que inflamo
a lua eleva-se
na tua fronte
enquanto tacteias a pedra
até ser flor
- Mia Couto, em Raiz de orvalho e outros poemas. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Saudades - Mia Couto

Saudades

Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trêmula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono

- Mia Couto, no livro "Raiz de Orvalho e outros poemas".



terça-feira, 23 de abril de 2013

Saudades - Mia Couto

Saudades

Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trêmula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono

Mia Couto, no livro "Raiz de Orvalho e outros poemas".

domingo, 11 de novembro de 2012

Mia Couto - A demora

A demora
O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.


Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto - In " idades cidades divindades"

sábado, 13 de outubro de 2012

Mia Couto - In Idades, Cidades e Divindades

Lições
Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.


Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.

Trémula, a haste
me pede
o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.

Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?

Mia Couto, In "Idades, Cidades e Divindades"

Mia Couto, In "Raiz de Orvalho e outros poemas".

Noturnamente
Noturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo

Peito que em mim respira

olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces

Mia Couto, In "Raiz de Orvalho e outros poemas".

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Para ti - Mia Couto


Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
Mia Couto



Paraty - Fotografia © Leonora Fink

Mia Couto - Poema


E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue o teu.

Mia Couto



Fotografia © Leonora Fink

Pergunta-me - Mia Couto

Fotografia Leonora Fink














Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
Mia Couto

MIA COUTO - Do poema Sem depois

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo.

MIA COUTO

Do poema "Sem depois"

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Mia Couto

Deslumbrar, como manda a palavra, deveria ser cegar, retirar a luz. E afinal era agora um ofuscamento que eu pretendia. Essa alucinação que eu uma vez sentira, eu sabia, era viciante como morfina. O amor é uma morfina. Podia ser comerciado em embalagens sob o nome: Amorfina. (pag.140)

Mia Couto (Antes do nascer do mundo)