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terça-feira, 9 de outubro de 2012

António Ramos Rosa - O Jardim

O Jardim

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,

ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

António Ramos Rosa







Jardim - Fotografia © Leonora Fink




































































domingo, 2 de setembro de 2012

António Ramos Rosa

Por vezes cada objecto se ilumina 
do que no passar é pausa íntima 
entre sons minuciosos que inclinam 
a atenção para uma cavidade mínima 
E estar assim tão breve e tão profundo 

...como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo

António Ramos Rosa

quinta-feira, 7 de junho de 2012

António Ramos Rosa - A Partir da Ausência

A Partir da Ausência

Imaginar a forma 
doutro ser Na língua, 
proferir o seu desejo 
O toque inteiro

Não existir

Se o digo acendo os filamentos
desta nocturna lâmpada
A pedra toco do silêncio densa
Os veios de um sangue escuro

Um muro vivo preso a mil raízes

Mas não o vinho límpido
de um corpo
A lucidez da terra
E se respiro a boca não atinge
a nudez una
onde começo

Era com o sol E era
um corpo

Onde agora a mão se perde
E era o espaço

Onde não é

O que resta do corpo?
Uma matéria negra e fria?
Um hausto de desejo
retém ainda o calor de uma sílaba?

As palavras soçobram rente ao muro
A terra sopra outros vocábulos nus
Entre os ossos e as ervas,
uma outra mão ténue
refaz o rosto escuro
doutro poema

António Ramos Rosa








terça-feira, 22 de maio de 2012

António Ramos Rosa, in Volante Verde

A leitora abre o espaço num sopro subtil. 
Lê na violência e no espanto da brancura. 
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa. 
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco. 
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra. 

...
Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento. 
Desce pelos bosques como uma menina descalça. 
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva 
em chama de água. Na imaculada superfície 
ou na espessura latejante, despe-se das formas, 

branca no ar. É um torvelinho harmonioso, 
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira 
na sede obscura de palavras verticais. 
A água move-se até ao seu princípio puro. 
O poema é um arbusto que não cessa de tremer. 

António Ramos Rosa, in "Volante Verde»

segunda-feira, 30 de abril de 2012

António Ramos Rosa

Um ofício que fosse de intensidade e calma 
e de um fulgor feliz E que durasse 
com a densidade ardente e contemporâneo 
de quem está no elemento aceso e é a estatura 
da água num corpo de alegria E que fosse fundo 
o fervor de ser a metamorfose da matéria 
que já não se separa da incessante busca 
que se identifica com a concavidade originária 
que nos faz andar e estar de pé 
expostos sempre à única face do mundo
Que a palavra fosse sempre a travessia
de um espaço em que ela própria fosse aérea
do outro lado de nós e do outro lado de cá
tão idêntica a si que unisse o dizer e o ser
e já sem distância e não-distância nada a separasse
desse rosto que na travessia é o rosto do ar e de nós próprios

António Ramos Rosa

sexta-feira, 22 de julho de 2011

António Ramos Rosa - Para quê as palavras?

António Ramos Rosa


"Para quê as palavras?

Acaso serão elas necessárias
Ao mundo ou para nós?
A superfície do mundo
É tão compacta e plena que nem um só objecto
Pode deslocar-se ou perder o seu suporte
E para nós qual a diferença entre a página vazia
E a mancha caligráfica das ténues sílabas
Que talvez não sejam mais do que volúveis aranhas
Tecendo uma teia que cintila sobre o vazio?
Mas talvez as palavras nos ofereçam um solo
E um alento para inventar o espaço
E atrair a terra para a página
É porque nós precisamos aderir ao chão

que as palavras abrem a passagem para o começo do mundo”