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sexta-feira, 1 de março de 2013

Todas as Cartas de Amor são Ridículas - Álvaro de Campos


Todas as Cartas de Amor são Ridículas

Todas as cartas de amor são 
Ridículas. 
Não seriam cartas de amor se não fossem 
Ridículas. 
Também escrevi em meu tempo cartas de amor, 
Como as outras, 
Ridículas. 

As cartas de amor, se há amor, 
Têm de ser 
Ridículas. 

Mas, afinal, 
Só as criaturas que nunca escreveram 
Cartas de amor 
É que são 
Ridículas. 

Quem me dera no tempo em que escrevia 
Sem dar por isso 
Cartas de amor 
Ridículas. 

A verdade é que hoje 
As minhas memórias 
Dessas cartas de amor 
É que são 
Ridículas. 

(Todas as palavras esdrúxulas, 
Como os sentimentos esdrúxulos, 
São naturalmente 
Ridículas.)


Álvaro de Campos




sexta-feira, 6 de julho de 2012

Poema em Linha Reta - Fernando Pessoa

Poema em Linha Reta - Fernando Pessoa






Poema em linha reta

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)


538

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.



E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.



Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...



Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,



Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?



Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


quarta-feira, 16 de maio de 2012

Álvaro de Campos - Tabacaria

Álvaro de Campos: Tabacaria

Não sou nada,
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres...

terça-feira, 20 de março de 2012

Álvaro de Campos

Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) -
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos meus deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-a!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fôsse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sòzinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sòzinho.
Já disse que sou sòzinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul - o mesmo da minha infância -
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sòzinho!

Álvaro de Campos
 

sábado, 29 de outubro de 2011

Fernando Pessoa -‎ PASSAGEM DAS HORAS - Álvaro de Campos

  • Fernando Pessoa -‎ PASSAGEM DAS HORAS - Álvaro de Campos

  • Trago dentro do meu coração,
  • Como num cofre que se não pode fechar de cheio, Todos os lugares onde estive, Todos os portos a que cheguei, Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias, Ou de tombadilhos, sonhando, E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero. A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde, O coral das Maldivas em passagem cálida, Macau à uma hora da noite... Acordo de repente... Yat-lô--ô-ôôô-ô-ô-ô-ô-ô-ô...Ghi-... E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade... A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol... Dar-es-Salaam (a saída é difícil)... Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar... Tempestades em torno ao Guardafui... E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada... E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo... Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei... Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos... Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti, Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz. A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me, Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge, Desta entrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso, Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas, Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada, Deste desassossego no fundo de todos os cálices, Desta angústia no fundo de todos os prazeres, Desta sociedade antecipada na asa de todas as chávenas, Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias. Não sei se a vida é pouco ou demais para mim. Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência, Consangüinidade com o mistério das coisas, choque Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos, Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz. Seja o que for, era melhor não ter nascido, Porque, de tão interessante que é a todos os momentos, A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas, E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos, Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs, E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso, Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida. Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços, É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas... Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro, Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca... Que há de ser de mim? Que há de ser de mim? Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão, Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra. Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos. Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir... Tão decadente, tão decadente, tão decadente... Só estou bem quando ouço música, e nem então. Jardins do século dezoito antes de 89, Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira? Como um bálsamo que não consola senão pela idéia de que é um bálsamo, A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai. Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se. Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver. Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente. Estou no caminho de todos e esbarram comigo. Minha quinta na província, Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti. Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir, E fica sempre, fica sempre, fica sempre, Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica... Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito. Só humanitariamente é que se pode viver. Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos, Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver. Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim! Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo, Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri. Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos, E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse. Amei e odiei como toda gente, Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo, E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo. Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti. Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito, Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo. Mãe suave e antiga das emoções sem gesto, Irmã mais velha, virgem e triste, das idéias sem nexo, Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos, A direção constantemente abandonada do nosso destino, A nossa incerteza pagã sem alegria, A nossa fraqueza cristã sem fé, O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases, A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos, A nossa vida, o mãe, a nossa perdida vida... Não sei sentir, não sei ser humano, conviver De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra. Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido, Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens, Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta, Unia razão para descansar, uma necessidade de me distrair, Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim. Por isso sê para mim materna, ó noite tranqüila... Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz, Tu que não existes, que és só a ausência da luz, Tu que não és uma coisa, rim lugar, uma essência, uma vida, Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão, Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa, Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos, E sê frescor e alívio, o noite, sobre a minha fronte... 'Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento, Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja, Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho, Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva... Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente, Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens, Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem... Sentir tudo de todas as maneiras, Viver tudo de todos os lados, Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo, Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo, Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia, Seja uma flor ou uma idéia abstrata, Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus. E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo. São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores, E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também, Porque ser inferior é diferente de ser superior, E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão. Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter, E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades, E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles, E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens. Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia, Basta que ela exista para que tenha razão de ser. Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido, (No mesmo abraço comovido) O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece, O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria, E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças, O ladrão de estradas, o salteador dos mares, O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas — Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida. Beijo na boca todas as prostitutas, Beijo sobre os olhos todos os souteneurs, A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões. Tudo é a razão de ser da minha vida. Cometi todos os crimes, Vivi dentro de todos os crimes (Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio, Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles, E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida). Multipliquei-me, para me sentir, Para me sentir, precisei sentir tudo, Transbordei, não fiz senão extravasar-me, Despi-me, entreguei-rne, E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino, E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos. Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros, Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas, Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais. Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos, E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum). Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma! (Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te, Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!) Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver, Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes, Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta, A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim, Os seus half-holidays inesperados... Mary, eu sou infeliz... Freddie, eu sou infeliz... Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados, Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis, Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco — Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo, Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento, Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus! Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro, E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim ... Meu coração tribunal, meu coração mercado, Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco, Meu coração rendez-vous de toda a humanidade, Meu coração banco de jardim público, hospedaria, Estalagem, calabouço número qualquer cousa (Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo) Meu coração clube, sala, platéia, capacho, guichet, portaló, Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial, Meu coração postigo, Meu coração encomenda, Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega, Meu coração a margem, o lirrite, a súmula, o índice, Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração. Todos os amantes beijaram-se na minh'alma, Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim, Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro, Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes, E houve um segredo que me disseram todos os assassinos. (Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho, Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda, Com as cabeças femininas coiffées de lin E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo... Aquela que é o anel deixado em cima da cômoda, E a fita entalada com o fechar da gaveta, Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada, Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la ... Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol, Definitivamente para todo o resto do Universo, E que os carros me passem por cima.) Fui para a cama com todos os sentimentos, Fui souteneur de todas ás emoções, Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações, Troquei olhares com todos os motivos de agir, Estive mão em mão com todos os impulsos para partir, Febre imensa das horas! Angústia da forja das emoções! Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço, A cadela a uivar de noite, O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia, O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa, A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros, Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo, Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos, Orgia intelectual de sentir a vida! Obter tudo por suficiência divina — As vésperas, os consentimentos, os avisos, As cousas belas da vida — O talento, a virtude, a impunidade, A tendência para acompanhar os outros a casa, A situação de passageiro, A conveniência em embarcar já para ter lugar, E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, urna frase, E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa. Poder rir, rir, rir despejadamente, Rir como um copo entornado, Absolutamente doido só por sentir, Absolutamente roto por me roçar contra as coisas, Ferido na boca por morder coisas, Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas, E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida. Sentir tudo de todas as maneiras, Ter todas as opiniões, Ser sincero contradizendo-se a cada minuto, Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito, E amar as coisas como Deus. Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário, Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia Que a dor real das crianças em quem batem (Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem — E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?) Eu, enfim, que sou um diálogo continuo, Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre, Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque E faz pena saber que há vida que viver amanhã. Eu, enfim, literalmente eu, E eu metaforicamente também, Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso As leis irrepreensíveis da Vida, Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada, O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim, Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo... Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma, Sem personalidade com valor declarado, Eu, o investigador solene das coisas fúteis, Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso, E que acho que não faz mal não ligar importâricia à pátria Porqtie não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora, Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço, Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico, Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos, Eu, o policia que a olha, parado para trás na álea, Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um coral com guizos. Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina Coada através das árvores do jardim público, Eu, o que os espera a todos em casa, Eu, o que eles encontram na rua, Eu, o que eles não sabem de si próprios, Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso, Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma, O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre, O largo onde se encontram as suas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros, A cicatriz do sargento mal encarado, O sebo na gola do explicador doente que volta para casa, A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre, E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)... Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas, Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre, Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta, O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo, O sacana do José que prometeu vir e não veio E a gente tinha uma partida para lhe fazer... Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo... Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão por que elas se abrem, E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas... Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões, A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos, Sem que haja uma lápida no cemitério para o irmão de tudo isto, E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa... Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha, E uso monóculo para não parecer igual à idéia real que faço de mim, Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural, Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me, Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida... Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas, O baú das iniciais gastas, A entonação das vozes que nunca ouviremos mais - Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo. A Brígida prima da minha tia, O general em que elas falavam - general quando elas eram pequenas, E a vida era guerra civil a todas as esquinas... Vive le mélodrame oú Margot a pleuré! Caem as folhas secas no chão irregularmente, Mas o fato é que sempre é outono no outono, E o inverno vem depois fatalmente, há só um caminho para a vida, que é a vida... Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos, Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais, E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo. Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas, E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra. Não me subordino senão por atavisnio, E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama. Das serrasses de todos os cafés de todas as cidades Acessíveis à imaginação Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer, Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira, Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi. No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém passa, Vou ao lado dela sem ela saber. No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso combinado, Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com eles lá. Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me, Não há modo de eu não estar em toda a parte. O meu privilégio é tudo (Brevetée, Sans Garantie de Dieu, a minh'Alma). Assisto a tudo e definitivamente. Não há jóia para mulher que não seja comprada por mim e para mim, Não há intenção de estar esperando que não seja minha de qualquer maneira, Não há resultado de conversa que não seja meu por acaso, Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite de S. Carlos há cinqüenta Que não seja para mim por uma galantaria deposta. Fui educado pela Imaginação, Viajei pela mão dela sempre, Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso, E todos os dias têm essa janela por diante, E todas as horas parecem minhas dessa maneira. Cavalgada explosiva, explodida, como uma bomba que rebenta, Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo, Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo, Galga, cavalo eléctron-íon, sistema solar resumido Por dentro da ação dos êmbolos, por fora do giro dos volantes. Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstrata e louca, Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida, Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas, E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim. Ho-ho-ho-ho-ho!... Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo Adiante da própria idéia veloz do corpo projetado, Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa, He-la-ho-ho ... Helahoho ... Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo... A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe As rodas da locomotiva, as rodas do elétrico, os volantes dos Diesel, E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa. Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente, Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo, Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca... Ho ---- Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo! Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta! Ave, salve, viva a grande máquina universo! Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis! Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, idéias abstratas, A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna, A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso, O resto, o estático resto que fica nos olhos que param, Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves, Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem, Nos meus nervos locomotiva, carro elétrico, automóvel, debulhadora a vapor Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel, Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a eletricidade, Máquina universal movida por correias de todos os momentos! Todas as madrugadas são a madrugada e a vida. Todas as auroras raiam no mesmo lugar: Infinito... Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta, Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore, E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho... Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra, Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis, noturna, Rola no espaço abstrato, na noite mal iluminada realmente Rola ... Sinto na minha cabeça a velocidade de giro da terra, E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim, Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio, Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo, Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstrato, Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas, A Meta invisível — todos os pontos onde eu não estou — e ao mesmo tempo ... Ah, não estar parado nem a andar, Não estar deitado nem de pé, Nem acordado nem a dormir, Nem aqui nem noutro ponto qualquer, Resol,,,er a equação desta inquietação prolixa, Saber onde estar para poder estar em toda a parte, Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas ... Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas, Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas, Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas ... Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques, Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos, Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias, Numa velocidade crescente, insistente, violenta, Hup-la hup-la hup-la hup-la ... Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas, Cavalgada energética por dentro de todas as energias, Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde, Clarim claro da manhã ao fundo Do semicírculo frio do horizonte, Tênue clarim longínquo como bandeiras incertas Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis ... Clarim trêmulo, poeira parada, onde a noite cessa, Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade ... Carro que chia limpidamente, vapor que apita, Guindaste que começa a girar no meu ouvido, Tosse seca, nova do que sai de casa, Leve arrepio matutino na alegria de viver, Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei como, Costureira fadada para pior que a manhã que sente, Operário tísico desfeito para feliz nesta hora Inevitavelmente vital, Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático, Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas Abrem aqu; e ali os olhos cortinados a branco... Toda a madrugada é uma colina que oscila, e caminha tudo Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens — Sol dos vértices e nos... da minha visão estriada, Do rodopio parado da minha retentiva seca, Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver. Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol rua, Aros caixotes trolley loja rua i,itrines saia olhos Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua Passeio lojistas "perdão" rua Rua a passear por mim a passear pela rua por mim Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras, O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno, Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua. Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo. Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá. Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio! Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele! Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te Por todos os precipícios abaixo E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração! À moi, todos os objetos projéteis! À moi, todos os objetos direções! À moi, todos os objetos invisíveis de velozes! Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me! Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso! A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim! Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias, Velocidade entra por todas as idéias dentro, Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os, Chamusca todos os ideais humanitários e úteis, Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes, Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado Os corpos de todas as filosofias, os tropos de todos os poemas, Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstrato nos ares, Senhor supremo da hora européia, metálico a cio. Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!  Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói, Declina dentro de mim o sol no alto do céu. Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos. Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar? Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata, Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo, Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés, Calcar, calcar, calcar até não sentir. Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis, Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou. Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos, Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços, Cavalgada vôo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago, Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo — eu. Helahoho-o-o-o-o-o-o-o ... Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação ...
    Álvaro de Campos, 22-5-1916

domingo, 23 de outubro de 2011

Álvaro de Campos - Afinal

Álvaro de Campos

Afinal

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Tabacaria - Álvaro de Campos

TABACARIA 

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

‎(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)



Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.



Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928 


terça-feira, 21 de setembro de 2010

Poema em Linha Reta - Álvaro de Campos - Fernando Pessoa

    Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida... Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que venho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. Álvaro de Campos