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terça-feira, 21 de agosto de 2012

Nise da Silveira - Contos de Fada


Contos de Fada

Imagem: Maxfield Parrish – A Bela Adormecida

Por Nise da Silveira

Os contos de fada, do mesmo modo que os sonhos, são representações de acontecimentos psíquicos. Mas, enquanto os sonhos apresentam-se sobrecarregados de fatores de natureza pessoal, os contos de fada encenam os dramas da alma com materiais pertencentes em comum a todos os homens. Eles nos revelam esses dramas na sua rude ossatura, despojados dos múltiplos acessórios individuais que entram na composição dos sonhos.

Os contos de fada têm origem nas camadas profundas do inconsciente, comuns à psique de todos os humanos. Pertencem ao mundo arquetípico. Por isto seus temas reaparecem de maneira tão evidente e pura nos contos de países os mais distantes, em épocas as mais diferentes, com um mínimo de variações. Este é o motivo porque os contos de fada interessam à psicologia analítica.

Pesquisadores modernos decifraram contos, velhos de 4.000 anos, gravados pelos babilônios, hititas, cananeus, e mesmo alguns afirmam haver encontrado vestígios de certos temas, ainda hoje preservados em estórias, que remontam a 25.000 anos antes de Cristo.

Os homens sempre gostaram de estórias maravilhosas. Não só as crianças, mas também os adultos. É salutar ouvir a narração de contos de fada e ler velhos mitos. “Mitos e contos de fada, diz Jung, dão expressão a processos inconscientes e sua narração provoca a revitalização desses processos, reestabelecendo assim a conexão entre consciente e inconsciente”.

Não se trata de acreditar nos feitos heróicos e nos encantamentos que as estórias descrevem. Essas coisas não são verdades objetivas mas, sim, são verdades subjetivas narradas na linguagem dos símbolos. Estórias e mitos não passarão através do crivo das exigências racionais, evidentemente. Contudo isso não impede que atinjam outras faixas para além do consciente. Obscuramente o homem pressentirá que ali se espelham acontecimentos em desdobramento no seu próprio e mais profundo íntimo. São essas ressonâncias que fazem o eterno fascínio dos contos de fada.

Vejamos um exemplo de interpretação de conto de fada.

A Bela Adormecida – (resumo)

Era uma vez um rei e uma rainha que sempre se lamentavam por não terem filhos. Certo dia, quando a rainha estava tomando banho, uma rã saltou de dentro d’água e lhe disse: «Vosso maior desejo será satisfeito. Daqui a menos de um ano V.M. terá uma filha».

Aconteceu segundo a rã anunciou. Uma menina lindíssima nasceu. Grandes comemorações foram organizadas, inclusive um banquete para o qual o rei convidou seus parentes, cortesãos e doze fadas. Mas naquela região habitavam treze fadas e ele dispunha apenas de uma dúzia de pratos de ouro. Por isso uma das fadas não foi convidada.

Depois do banquete, 3S fadas, uma a uma, ofereceram dons à princesinha: beleza, bondade, riqueza, etc. – Apenas a 11a fada havia ofertado sua dádiva, a 13a (a que não fora convidada) entrou no castelo furiosa e disse em alta voz: «no dia em que completar 15 anos a princesa picará o dedo no fuso de uma roca e morrerá». Todos ficaram aterrorizados. A 12a fada, porém, não havia feito ainda o seu dom. Ela não tinha poder para anular o voto da fada má; a única coisa que lhe seria possível era atenuá-lo. Disse então: «Ao picar o dedo no fuso, a princesa não morrerá, mas cairá num sono profundo que durará cem anos». 0 rei ordenou que todas as rocas com seus lusos, fossem queimados. Precaução inútil.

No dia em que completava 15 anos, percorrendo o castelo, a princesa notou, pela primeira vez, uma estreita escada em caracol que conduzia a uma torre aparentemente inabitada. Subiu e viu-se diante de uma mulher muito velha que fiava. Que faz a senhora? perguntou a princesa. Estou fiando, respondeu a velha. Que coisa mais engraçada, disse a jovem, nunca vi isto. E tomando o fuso nas mãos, tentou fiar. No primeiro movimento que fez, picou o dedo. Instantaneamente adormeceu. Sono profundo estendeu-se ao mesmo tempo sobre todos os habitantes do castelo: rei, rainha, cortesãos e pagens, servos, animais e até o fogo da lareira. Então uma alta e espessa sebe de espinhos rapidamente ergueu-se, cercando o castelo e ocultando-o.

Muito se falava da bela princesa adormecida naquele estranho bosque. Príncipes e cavalheiros cada ano ali tentaram penetrar, mas os espinhos os detinham como se fossem mãos e, enredados no seu entrançado, eles pereciam.

Exatamente cem anos depois um príncipe, ouvindo contar aquelas coisas, decidiu atravessar a sebe de espinhos apesar de todos os conselhos contrários. Apenas o príncipe aproximou-se da sebe, os espinhos abriram-lhe caminho para de novo fecharam-se após sua passagem. 0 príncipe foi andando e vendo cavalos, cães, pombos, servos, cortesãos, o rei e a rainha, mergulhados em sono profundo. Por fim chegou à torre onde estava a princesa. Achou-a linda e beijou-a. Ela acordou sorrindo. Desceram juntos e todos os seres adormecidos despertaram simultaneamente. 0 rei e a rainha, cortesãos, pagens, criados, bichos, o fogo da lareira. A bela princesa e o príncipe casaram-se e foram muito felizes.

O rei e a rainha não tinham filhos e entristeciam-se por não deixarem sucessores ao trono. Mas eis que uma rã anuncia à rainha o acontecimento que trará nova vida àquele reino estagnado: Nascerá uma princesa, diz o pequeno animal.

É freqüente que um período de esterilidade preceda o nascimento dos heróis, tal como aridez e depressão costumam anteceder fases de intensa atividade do inconsciente. Muitos artistas criadores já descreveram este fenômeno.

A rã é um animal que tem múltiplas conexões com a fertilidade. 0 coaxar das rãs anuncia a primavera, a exuberância da natureza, o desejo sexual, tanto assim que esses animais, nos tempos antigos, eram usados como amuletos para provocar amor e fecundidade. No nosso conto, a rã surgindo na água do banho, poderá mesmo ser subentendida como o órgão masculino que fecunda a rainha.

A rã, diz Jung, entre os animais de sangue frio é aquele que pelo aspecto de seu corpo maior semelhança apresenta com a forma humana. Daí exprimir, no simbolismo dos sonhos, impulsos do inconsciente possuidores de forte carga energética que tendem a tornarem-se conscientes. Assim, do fundo do inconsciente, algo importante vem à luz. Nasce a heroina do conto.

Uma fada deixa de ser convidada para o banquete comemorativo do feliz acontecimento. Este é um motivo recurrente em muitos contos. Se os deuses e deusas, se as fadas, representam conteúdos do inconsciente coletivo e, se um deles foi esquecido ou, por causas diferentes, não foi tomado em consideração, isso significa que surgirão desarmonias e pertubações dentro do sistema psíquico. Todo o sistema sofre em seu conjunto quando um de seus núcleos vitais é desatendido. A fada omitida surge de repente e transtorna a festa, lançando sobre a princesa terrível maldição. Ressentida, ferida em seus sentimentos, na sua vaidade e talvez também no seu desejo de ser aceita e amada, a fada encoleriza-se violentamente. A pequena princesa morreria aos 15 anos. Seria de fato uma tremenda vingança. Morta a princesa, apenas púbere, ela regrediria ao mundo subterrâneo, ao mundo das grandes matriarcas. Não poderia ocorrer seu encontro com o homem e aquele reino estagnado em breve estaria extinto. Mau humor, cólera, decorrentes de decepções sentimentais, são freqüentes nas mulheres. (Tudo quanto a mulher ressentida pode arquitetar como vingança foi modernamente focalizado pelo dramaturgo F. Durrematt nas peças A Visita da Velha Senhora e Os Físicos). Outra fada atenua a maldição, transformando a morte em sono. Sono e Morte – Hypnos e Thanatos – eram venerados como deuses irmãos. 0 sono é uma morte transitória e a morte é o sono eterno. Na interpretação do conto, a morte seria a completa repressão do conteúdo do inconsciente representado pela princesa, enquanto o sono durante um século indica que um longo período de repressão decorrerá ainda antes que este conteúdo possa atingir a consciência. Que aspecto da natureza feminina tem sido mais reprimido na nossa civilização cristã? Sem dúvida o da sexualidade. Muito mais que sobre o homem, pesam sobre a mulher as sanções que obrigam a repressão do instinto sexual. Note-se que a heroina do conto adormece na data em que completa 15 anos, marco na vida de toda jovem indicativo de que ela se tornou apta para a procriação.

No dia de seu aniversário a princesa descobre a velha fiandeira cuia existência havia sido esquecida (tal como a 13a fada com quem se identifica), motivo porque sua roca não fora destruída segundo as ordens do rei. E apenas segura o fuso, fere o dedo. 0 ato de fiar está estreitamente vinculado à feminilidade. É atributo das deusas mães que tecem a trama da vida, o destino, que sem cessar agrupam e organizam os elementos da natureza. 0 fuso, pela sua forma, tem características fálicas evidentes. Está sempre associado à roca como parte indispensável da atividade feminina de tecer novas vidas, tecer “os tecidos” do corpo (Neumann).

Iniciar-se na arte de fiar significaria simbolicamente iniciar-se na vida sexual. A velha feiticeira instruiria a princesa. Mas esta iniciação desencadeia o castigo. 0 conto reflete, portanto, uma condição coletiva onde não só são negados à mulher direitos elementares em relação à sua vida instintiva, porém mesmo revela conexões entre a sexualidade feminina, o mal e o castigo, bem características da civilização patriarcal e cristã. Esta situação coletiva causa estagnação no desenvolvimento da psique da mulher e produz reações agressivas forjadas pela sua componente masculina, reações que no conto se exprimem pela sebe de espinhos.

Cem anos mais tarde, chega o príncipe e diante dele os espinhos abrem caminho. Não é necessário sustentar luta contra quaisquer obstáculos. Dai a cem anos, num futuro distante, a situação coletiva refletida pelo conto mudará.

Do ponto de vista da psicologia masculina o conto nos revela que o príncipe, decidindo-se a ir em busca da bela adormecida, apesar dos conselhos contrários, rompe os laços familiares que o prendiam. Chegou o tempo de libertar a cativa, a mulher desconhecida, do sono em que a Mãe Terrível a mantinha prisioneira. Assim fazendo ele está libertando sua própria contra parte feminina, o complemento de sua personalidade. Unindo-se à mulher que ele libertou, o herói cumpre o requisito necessário para completar sua personalidade e estabelecer seu próprio reino. (Na interpretação deste conto, baseamo-nos principalmente em notas de conferências da dra. M. L. von Franz, feitos no Instituto C. G. Jung em Zurique). Dra. M.L. von Franz depois de estudar durante vários anos os contos de fada das mais distantes proveniências, chegou à conclusão de que todos esses contos descrevem o mesmo tema, sob múltiplas variações; o mesmo acontecimento fundamental, isto é, a busca da totalidade psíquica. Os diferentes contos dão ênfase maior ou menor às diversas etapas desse processo em constante desdobramento.

Fonte: CooJornal – Revista Rio Total