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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Barbery, Muriel. A elegância do ouriço. São Paulo: Cia das Letras, 2008. - Fragmento

‎"Pela primeira vez toquei num livro. Eu tinha visto os maiores da turma olharem para traços invisíveis, como que movidos pela mesma força, e, mergulhando no silêncio, tirarem do papel morto alguma coisa que parecia viva.
Aprendi a ler sem ninguém saber. A professora ainda repetia as letras para as outras crianças, e eu já conhecia havia muito tempo a solidariedade que tece os sinais escritos, suas infinitas combinações e os sons maravilhosos que tinham me investido naquele local, no primeiro dia, quando ela dissera meu nome. Ninguém soube. Li como uma alucinada, primeiro escondido, depois, quando o tempo normal da aprendizagem me pareceu superado, na cara de todo mundo mas tomando o cuidado de dissimular o prazer e o interesse que tirava daquilo.
A criança fraca se tornara uma alma faminta.
(...)
Um trecho de música escapando de um aposento desconhecido, um pouco de perfeição no fluxo das coisas humanas - inclino suavemente a cabeça, penso na camélia sobre o musgo do templo, numa xícara de chá enquanto o vento, lá fora, acaricia as folhagens, a vida que escapa se imobiliza numa jóia sem futuro nem projetos, o destino dos homens, salvo da pálida sucessão dos dias, aureola-se enfim de luz e, superando o tempo, abrasa meu coração quieto.
A Civilização é a violência dominada, a vitória sempre inacabada contra a agressividade do primata. Pois primatas nós fomos, e primatas permanecemos, uma camélia sobre o musgo que aprendíamos a desfrutar. Aí está toda a função da educação. Que é educar? É propor incansavelmente camélias sobre o musgo, como derivativos à pulsão da espécie, que jamais pára e ameaça continuamente o frágil equilíbrio da sobrevivência.
Sou muito camélia sobre o musgo. Nada mais, pensando bem, seria capaz de explicar minha reclusão neste cubículo enfadonho. Convencida desde a aurora de minha vida de sua inanidade, eu poderia ter escolhido a revolta e, tomando o céu por testemunha da iniqüidade de minha sorte, explorado as fontes de violência que abundam na nossa condição. Mas a escola fez de mim uma alma cujo destino de vacuidade não levou apenas à renúncia e à clausura. O deslumbramento de meu segundo nascimento preparou em mim o terreno do domínio pulsional. Já que a escola me fizera nascer, eu lhe devia fidelidade e, portanto, me conformei com as intenções de meus educadores, tornando-me com docilidade uma criatura civilizada. Na verdade, quando a luta contra a agressividade do primata se apodera dessas armas prodigiosas que são os livros e as palavras, o negócio é fácil, e foi assim que me tornei uma alma educada, que extraía dos sinais escritos a força de resistir à própria natureza."

Barbery, Muriel. A elegância do ouriço. São Paulo: Cia das Letras, 2008.