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sábado, 17 de janeiro de 2015

JORGE LUIS BORGES - O ALEPH (1949)

Lotus. Desenho vetorial. © Leonora Fink 



JORGE LUIS BORGES
O ALEPH
(1949)

Chego, agora, ao centro inefável de meu 
relato; 
começa, aqui, meu desespero de escritor. 
Toda linguagem é um alfabeto de símbolos 
cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham;
como transmitir aos outros o infinito Aleph
que minha temerosa memória mal consegue abarcar? 
Os místicos, em transe análogo,
multiplicam os emblemas: para significar a divindade, 
um persa fala de um pássaro que de alguma forma é todos os pássaros; 
Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em
toda parte e a circunferência em nenhuma;
Ezequiel, de um anjo de quatro faces que ao
mesmo tempo se volta para o oriente e para
o ocidente, para o norte e para o sul. 
(Não em vão rememoro essas inconcebíveis
analogias: alguma relação têm com o Aleph.)
Os deuses não me negariam, talvez, o
achado de uma imagem equivalente, mas
este informe ficaria contaminado de
literatura, de falsidade. Além disso, o
problema central é insolúvel: a enumeração,
mesmo parcial, de um conjunto infinito.
Naquele instante gigantesco, vi milhões de
atos deleitáveis ou atrozes; nenhum me
assombrou tanto como o fato de todos
ocuparem o mesmo ponto, sem
superposição e sem transparência. O que
meus olhos viram foi simultâneo: o que
transcreverei, sucessivo, porque a linguagem
o é. Algo, contudo, recuperarei.
Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma
pequena esfera furta-cor, de um fulgor quase
intolerável. No início, julguei-a giratória;
depois compreendi que esse movimento era
uma ilusão produzida pelos vertiginosos
espetáculos que encerrava. O diâmetro do
Aleph seria de dois ou três centímetros, mas
o espaço cósmico estava ali, sem diminuição
de tamanho. Cada coisa (a lâmina do
espelho, digamos) era infinitas coisas, porque
eu a via claramente de todos os pontos do
universo. Vi o mar populoso, vi a alvorada e a
tarde, vi as multidões da América, vi uma teia
de aranha prateada no centro de um negra
pirâmide, vi um labirinto truncado (era
Londres), vi intermináveis olhos imediatos
perscrutando-se em mim como num espelho,
vi todos os espelhos do planeta e nenhum
me refletiu, vi num pátio interno da rua Soler
as mesmas lajotas que trinta anos antes vira
no corredor de uma casa de Fray Bentos, vi
cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal,
vapor de água, vi convexos desertos
equatoriais e cada um de seus grãos de areia,
vi em Inverness uma mulher que não
esquecerei, vi a violenta cabeleira, o corpo
altivo, vi um câncer no peito, vi um círculo de
terra seca numa calçada onde antes havia
uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um
exemplar da primeira versão de Plínio, a de
Philemon Holland, vi ao mesmo tempo cada
letra de cada página (quando menino, eu
costumava me maravilhar com o fato de as
letras de um volume fechado não se
misturarem nem se perderem no decorrer da
noite), vi a noite e o dia contemporâneos, vi
um poente em Querétaro que parecia refletir
a cor de uma rosa em Bengala, vi meu quarto
sem ninguém, vi num escritório de Alkmaar
um globo terrestre entre dois espelhos
multiplicado infindavelmente, vi cavalos de
crina remoinhada numa praia do mar Cáspio
ao alvorecer, vi a delicada ossatura de uma
mão, vi os sobreviventes de uma batalha
enviando cartões-postais, vi numa vitrine de
Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras
oblíquas de algumas samambaias no chão de
um jardim de inverno, vi tigres, êmbolos,
bisões, marulhos e exércitos, vi todas as
formigas que há na Terra, vi um astrolábio
persa, vi numa gaveta da escrivaninha
(e a letra me fez tremer) cartas obscenas,
incríveis, precisas, que Beatriz enviara a
Carlos Argentino, vi um adorado monumento
na Chacarita, vi a relíquia atroz do que
deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo, vi
a circulação de meu sangue escuro, vi a
engrenagem do amor e a transformação da
morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no
Aleph a Terra, e na Terra outra vez o Aleph
e no Aleph a Terra, vi meu rosto e minhas
vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem e
chorei, porque meus olhos tinham visto
aquele objeto secreto e conjectural cujo
nome os homens usurpam mas que nenhum
homem contemplou: o inconcebível universo.