terça-feira, 31 de julho de 2012

Caetano Veloso - Elegia 1938 (Carlos Drummond de Andrade)

Caetano Veloso - Elegia 1938 (Carlos Drummond de Andrade)




http://www.youtube.com/watch?v=AqNjbqQwOzE&feature=share



ELEGIA

 Ganhei (perdi) meu dia.
 E baixa a coisa fria
 também chamada noite, e o frio ao frio
 em bruma se entrelaçam, num suspiro.

 E me pergunto e me respiro
 na fuga deste dia que era mil
 para mim que esperava,
 os grandes sóis violentos, me sentia
 tão rico deste dia
 e lá se foi secreto, ao serro frio.

 Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera
 bem antes sua vaga pedraria ?
 Mas quando me perdi, se estou perdido
 antes de haver nascido
 e me nasci votado à perda
 de frutos que não tenho nem colhia ?

 Gastei meu dia. Nele me perdi.
 De tantas perdas uma clara via
 por certo se abriria
 de mim a mim, estrela fria.
 As arvores lá fora se meditam.
 O inverno é quente em mim, que o estou berçando
 e em mim vai derretendo
 este torrão de sal que está chorando.

 Ah, chega de lamento e versos ditos
 ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça,
 ao ouvido do muro,
 ao liso ouvido gotejante
 de uma piscina que não sabe o tempo, e fia
 seu tapete de água, distraída.

 E vou me recolher
 ao cofre de fantasmas, que a notícia
 de perdidos lá não chegue nem açule
 os olhos policiais do amor-vigia.
 Não me procurem que me perdi eu mesmo
 como os homens se matam, e as enguias
 à loca se recolhem, na água fria.

 Dia,
 espelho de projeto não vivido,
 e contudo viver era tão flamas
 na promessa dos deuses; e é tão ríspido
 em meio aos oratórios já vazios
 em que a alma barroca tenta confortar-se
 mas só vislumbra o frio noutro frio.

 Meu Deus, essência estranha
 ao vaso que me sinto, ou forma vã,
 pois que, eu essência, não habito
 vossa arquitetura imerecida;
 meu Deus e meu conflito,
 nem vos dou conta de mim nem desafio
 as garras inefáveis: eis que assisto
 a meu desmonte palmo a palmo e não me aflijo
 de me tornar planície em que já pisam
 servos e bois e militares em serviço
 da sombra, e uma criança
 que o tempo novo me anuncia e nega.

 Terra a que me inclino sob o frio
 de minha testa que se alonga,
 e sinto mais presente quando aspiro
 em ti o fumo antigo dos parentes,
 minha terra, me tens; e teu cativo
 passeias brandamente
 como ao que vai morrer se estende a vista
 de espaços luminosos, intocáveis:
 em mim o que resiste são teus poros.
 E sou meu próprio frio que me fecho
 Corto o frio da folha. Sou teu frio.

 E sou meu próprio frio que me fecho
 longe do amor desabitado e líquido,
 amor em que me amaram, me feriram
 sete vezes por dia em sete dias
 de sete vidas de ouro,
 amor, fonte de eterno frio,
 minha pena deserta, ao fim de março,
 amor, quem contaria ?
 E já não sei se é jogo, ou se poesia.

                       Carlos Drummond de Andrade

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