terça-feira, 17 de abril de 2012

Abecedário - Millôr Fernandes

Abecedário, Millôr Fernandes


A é uma letra com sótão. Chove sempre um pouco sobre o àcraseado.
B é um l que se apaixonou pelo 3. O b minúsculo é uma letra grávida.
Ao c só lhe resta uma saída. O ç cedilha, esse jamais tira a gravata.
O  D é um berimbau bíblico.
e minúsculo é uma letra esteatopígia (esteatopígia, ensino aos mais atrasadinhos, é uma pessoa que tem certa parte do corpo, que fica atrás e embaixo, muito feia). O E ri-se eternamente das outras letras.
F, com seu chapéu desabado sobre os olhos, é um gângster à espera de oportunidade. O f minúsculo é um poste antigo.
A pontinha do G é que lhe dá esse ar desdenhoso. O g minúsculo é uma serpente de faquir.
H é uma letra duplex. A parte de cima é muda. Serve também como escada para as outras letras galgarem sentido. O h minúsculo é um dinossauro.
I maiúsculo é guarda, em seu porte de letra, um pouco de número Iromano. O i minúsculo é um bilboquê.
J, com seu gancho de pirata, rouba às vezes o lugar do g. O jminúsculo é uma foca brincando com sua bolinha.
Vê-se nitidamente: o K é uma letra inacabada. Por enquanto só tem andaimes. Parece que vão fazer um R. Junto com o k minúsculo o Kmaiúsculo treina passo-de-ganso.
L maiúsculo parece um l que extraíram com raiz e tudo. Mas o lminúsculo não consegue disfarçar que é um número 1 espionando o alfabeto.
M maiúsculo é um gráfico de uma firma instável. O m minúsculo é uma cadeia de montanhas.
N é um M perneta. No n minúsculo pode-se jogar críquete com a bolinha do o.
O maiúsculo é um buraquinho no alfabeto.
p é um d plantando bananeira.
Q maiúsculo anda sempre com o laço do sapato solto. O q minúsculo é um p se olhando de costas no espelho.
R ficou assim de tanto praticar halterofilismo.
Sente-se que o s é um cifrão fracassado. O S maiúsculo é um cisne orgulhoso.
Na balança do T se faz jusTiça.
U é a ferradura do alfabeto, protegendo o galope das idéias. O uminúsculo é um n com as patinhas pro ar.
v é uma ponta de lança.
x é uma encruzilhada.
Y é a taça onde bebem as outras letras. Desapareceu do alfabeto porque se entregou covardemente, de braços para cima.
W são vês siameses.
Z é um caminho mais curto entre dois bares. O z minúsculo é um s cubista.

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