segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Ana Jácomo - Fragmento - No trem fantasma

Às vezes, não tem jeito: a gente precisa olhar e ver o que realmente há. Sem tentar tapar o sol com peneira. Sem ceder à tentação das miragens, por mais árido que seja o trecho da caminhada. Sem inventar as estratégias mais fajutas ou criativas para evitar o contato com o nosso sentimento. Sem fazer de conta que não estamos vendo. Não estamos sentindo. Não estamos apertando o coração. Às vezes, para seguir, precisamos parar. Para abrir espaço para os novos cultivos, precisamos limpar o terreno. Para construir, precisamos desconstruir: apegos, ilusões, crenças equivocadas, histórias que não são nossas. Para curar, precisamos olhar bem de perto algumas dores antigas, essas que a gente torce, torce, e continuam encharcadas. Essas que a gente muitas vezes prefere fingir que não sente mais. Essas sorrateiras, que nos surpreendem no primeiro instante em que nos desprevenimos. Precisamos seguir o rastro do nosso medo e descobrir onde ele começa, olhá-lo nos olhos como quem sabe que é maior do que ele, esvaziar a suposta força que nos acostumamos a lhe atribuir. (...) Às vezes, não tem jeito: a gente precisa olhar e ver o que realmente há. E quando começamos a fazer isso, com todo cuidado do mundo, bem devagar pra não assustar o medo, descobrimos que, embora nos apavorem, as nossas assombrações são feitas de fragilidade como aquelas criaturas horrendas do brinquedo da infância. Olhando de perto, nem são tão assustadores assim. O que faz com que pareçam tão convincentes, é a nossa insistência em continuar com os olhos fechados. Sim, olhar pode doer, no início, mas o que dói mais é seguir pela vida com a alma povoada por mentiras. Essas que nos impedem de estarmos vivos de verdade. (Ana Jácomo, do texto "No trem fantasma") -

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