segunda-feira, 14 de setembro de 2015
Antônio Gonçalves Dias - Canção do Tamoio
Antônio Gonçalves Dias
Canção do Tamoio
Natalícia
I
Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.
II
Um dia vivemos!
O homem que é forte
Não teme da morte;
Só teme fugir;
No arco que entesa
Tem certa uma presa,
Quer seja tapuia,
Condor ou tapir.
III
O forte, o cobarde
Seus feitos inveja
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!
IV
Domina, se vive;
Se morre, descansa
Dos seus na lembrança,
Na voz do porvir.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
Que a morte há de vir!
V
E pois que és meu filho,
Meus brios reveste;
Tamoio nasceste,
Valente serás.
Sê duro guerreiro,
Robusto, fragueiro,
Brasão dos tamoios
Na guerra e na paz.
VI
Teu grito de guerra
Retumbe aos ouvidos
D'imigos transidos
Por vil comoção;
E tremam d'ouvi-lo
Pior que o sibilo
Das setas ligeiras,
Pior que o trovão.
VII
E a mão nessas tabas,
Querendo calados
Os filhos criados
Na lei do terror;
Teu nome lhes diga,
Que a gente inimiga
Talvez não escute
Sem pranto, sem dor!
VIII
Porém se a fortuna,
Traindo teus passos,
Te arroja nos laços
Do inimigo falaz!
Na última hora
Teus feitos memora,
Tranqüilo nos gestos,
Impávido, audaz.
IX
E cai como o tronco
Do raio tocado,
Partido, rojado
Por larga extensão;
Assim morre o forte!
No passo da morte
Triunfa, conquista
Mais alto brasão.
X
As armas ensaia,
Penetra na vida:
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.
Pablo Neruda - Enigmas
Enigmas
(de Canto Geral, parte XIV: O Grande Oceano)
Me tendes perguntado que fia o crustáceo entre
as suas patas de ouro e vos respondo: O mar o sabe.
Me dizeis o que espera a ascídia em seu sino transparente?
Que espera? Eu vos digo, espera como vós, o tempo.
Me perguntais a quem alcança o abraço da alga Macrocustis?
Indagai-o, indagai-o a certa hora, em certo mar que eu conheço.
Sem dúvida me perguntareis pelo marfim maldito
do narval, para que eu vos responda
de que modo o unicórnio marinho agoniza arpoado.
Me perguntais talvez pelas plumas alcionárias que tremem
nas puras origens da maré astral?
E sobre a construção cristalina do pólipo tereis
embaralhado, sem dúvida
uma pergunta a mais, debulhando-a agora?
Quereis saber a elétrica matéria das puas do fundo?
A armada estalactita que caminha se quebrando?
O anzol do peixe pescador, a música estendida
na profundidade como um fio na água?
Eu quero dizer-vos que isto o sabe o mar,
que a vida em suas arcas
é vasta como a areia, inumerável e pura
e entre as uvas sanguinárias o tempo poliu
a dureza duma pétala, a luz da medusa
e debulhou o ramo de suas fibras corais
de uma cornucópia de nácar infinito.
Eu não sou mais do que a rede vazia que mostra
olhos humanos, mortos naquelas trevas,
dedos acostumados ao triângulo, medidas
de um tímido hemisfério de laranja.
Andei como vós escarvando
a estrela interminável,
e na minha rede, à noite, acordei nu,
única presa, peixe encerrado no vento.
(de Canto Geral, parte XIV: O Grande Oceano)
Pablo Neruda (1904-1973)
terça-feira, 1 de setembro de 2015
Paulo Leminski - Invernáculo - O que quer dizer - M. de memória - Parada Cardíaca - Razão de ser - Aviso aos náufragos - Amar você é coisa de minutos… - Poesia: - Adminimistério - Sintonia para pressa e presságio - Não discuto - A lua no cinema - Sem título
Invernáculo
Esta língua não é minha,
qualquer um percebe. Quem sabe maldigo mentiras, vai ver que só minto verdades. Assim me falo, eu, mínima, quem sabe, eu sinto, mal sabe. Esta não é minha língua. A língua que eu falo trava uma canção longínqua, a voz, além, nem palavra. O dialeto que se usa à margem esquerda da frase, eis a fala que me lusa, eu, meio, eu dentro, eu, quase. |
O que quer dizer
O que quer dizer diz.
Não fica fazendo o que, um dia, eu sempre fiz. Não fica só querendo, querendo, coisa que eu nunca quis. O que quer dizer, diz. Só se dizendo num outro o que, um dia, se disse, um dia, vai ser feliz. |
M. de memória
Os livros sabem de cor
milhares de poemas. Que memória! Lembrar, assim, vale a pena. Vale a pena o desperdício, Ulisses voltou de Tróia, assim como Dante disse, o céu não vale uma história. um dia, o diabo veio seduzir um doutor Fausto. Byron era verdadeiro. Fernando, pessoa, era falso. Mallarmé era tão pálido, mais parecia uma página. Rimbaud se mandou pra África, Hemingway de miragens. Os livros sabem de tudo. Já sabem deste dilema. Só não sabem que, no fundo, ler não passa de uma lenda. |
Parada cardíaca
Essa minha secura
essa falta de sentimento não tem ninguém que segure, vem de dentro. Vem da zona escura donde vem o que sinto. Sinto muito, sentir é muito lento. |
Razão de ser
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso, preciso porque estou tonto. Ninguém tem nada com isso. Escrevo porque amanhece, E as estrelas lá no céu Lembram letras no papel, Quando o poema me anoitece. A aranha tece teias. O peixe beija e morde o que vê. Eu escrevo apenas. Tem que ter por quê? |
Aviso aos náufragos
Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida. Nasceu para ser pálida, um mero plágio da Ilíada, alguma coisa que cala, folha que volta pro galho, muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida Himalaia, sílaba sentida, nasceu para ser última a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo, um dia, esta pagina, papiro, vai ter que ser traduzida, para o símbolo, para o sânscrito, para todos os dialetos da Índia, vai ter que dizer bom-dia ao que só se diz ao pé do ouvido, vai ter que ser a brusca pedra onde alguém deixou cair o vidro. Não e assim que é a vida? |
Amar você é
|
Poesia:
“words set to music” (Dante
via Pound), “uma viagem ao desconhecido” (Maiakóvski), “cernes e medulas” (Ezra Pound), “a fala do infalável” (Goethe), “linguagem voltada para a sua própria materialidade” (Jakobson), “permanente hesitação entre som e sentido” (Paul Valery), “fundação do ser mediante a palavra” (Heidegger), “a religião original da humanidade” (Novalis), “as melhores palavras na melhor ordem” (Coleridge), “emoção relembrada na tranquilidade” (Wordsworth), “ciência e paixão” (Alfred de Vigny), “se faz com palavras, não com ideias” (Mallarmé), “música que se faz com ideias” (Ricardo Reis/Fernando Pessoa), “um fingimento deveras” (Fernando Pessoa), “criticismo of life” (Mathew Arnold), “palavra-coisa” (Sartre), “linguagem em estado de pureza selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to inspire” (Bob Dylan), “design de linguagem” (Décio Pignatari), “lo impossible hecho possible” (Garcia Lorca), “aquilo que se perde na tradução (Robert Frost), “a liberdade da minha linguagem” (Paulo Leminski)… |
Adminimistério
Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo, metade dando pro sábado, outra metade, domingo. Não haja som nem silêncio, quando o mistério aumentar. Silêncio é coisa sem senso, não cesso de observar. Mistério, algo que, penso, mais tempo, menos lugar. Quando o mistério voltar, meu sono esteja tão solto, nem haja susto no mundo que possa me sustentar.
Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos pousam no texto incerto. Seria o branco da folha, luz que parece objeto? Quem sabe o cheiro do preto, que cai ali como um resto? Ou seria que os insetos descobriram parentesco com as letras do alfabeto? |
Sintonia para pressa e presságio
Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo, na pele, na palma, na pétala, luz do momento. Soo na dúvida que separa o silêncio de quem grita do escândalo que cala, no tempo, distância, praça, que a pausa, asa, leva para ir do percalço ao espasmo.
Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa e não cabe mais na sala. |
Não discuto
não discuto
com o destino o que pintar eu assino |
A lua no cinema
A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado, a história de uma estrela que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena, dessas que, quando apagam, ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela, e toda a luz que ela tinha cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor que até hoje a lua insiste: — Amanheça, por favor! |
Sem título
Eu tão isósceles
Você ângulo Hipóteses Sobre o meu tesão
Teses sínteses
Antíteses Vê bem onde pises Pode ser meu coração |
Paulo Leminski - Bem no fundo - Dor elegante
Dor elegante - Itamar Assumpçãohttps://www.youtube.com/watch?v=AHs0chZLPc0Bem no fundo
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo, a gente gostaria de ver nossos problemas resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio é considerada nula e sobre ela — silêncio perpétuo extinto por lei todo o remorso, maldito seja quem olhar pra trás, lá pra trás não há nada, e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande, e aos domingos saem todos a passear o problema, sua senhora e outros pequenos probleminhas. |
Dor elegante
Um homem com uma dor
É muito mais elegante Caminha assim de lado Com se chegando atrasado Chegasse mais adiante
Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas Uma coroa, um milhão de dólares Ou coisa que os valha
Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor Ela é tudo o que me sobra Sofrer vai ser a minha última obra |
sábado, 16 de maio de 2015
Reinvenção - Cecília Meireles
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projecto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projecto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Carlos Drummond de Andrade - São mitos de calendário
"São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora".
Carlos Drummond de Andrade
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora".
Carlos Drummond de Andrade
terça-feira, 12 de maio de 2015
sábado, 2 de maio de 2015
Clarice Lispector - Entender é Limitado
Eu não entendo.
Eu não entendo.
Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado.
Mas não entender pode não ter fronteiras.
Eu sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
Não entender, do modo como falo, é um dom.
Não entender, mas não como um simples estado de espírito.
Bom é ser inteligente e não entender.
É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida.
É um desinteresse manso, uma doçura de burrice.
Só que de vez em quando vem a inquietação: eu quero entender um pouco, não demais.
Mas pelo menos entender que eu não entendo.
Clarice Lispector.
Eu não entendo.
Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado.
Mas não entender pode não ter fronteiras.
Eu sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
Não entender, do modo como falo, é um dom.
Não entender, mas não como um simples estado de espírito.
Bom é ser inteligente e não entender.
É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida.
É um desinteresse manso, uma doçura de burrice.
Só que de vez em quando vem a inquietação: eu quero entender um pouco, não demais.
Mas pelo menos entender que eu não entendo.
Clarice Lispector.
Se todos os rios são doces - Pablo Neruda
Se todos os rios são doces - Pablo Neruda
Se todos os rios são doces, de onde o mar tira o sal?
Como sabem as estações do ano que devem trocar de camisa?
Por que são tão lentas no inverno e tão agitadas depois?
E como as raízes sabem que devem alçar-se até a luz e saudar o ar com tantas flores e cores?
É sempre a mesma primavera que repete seu papel?
E o outono?... ele chega legalmente ou é uma estação clandestina?
https://www.youtube.com/watch?v=jNIc9q1mHts
Chuva - Ana Moura Fotografia Leonora Fink
https://www.youtube.com/watch?v=LbFU6czZ21U
As coisas vulgares que há na vida
Não deixam saudades
Só as lembranças que doem
Ou fazem sorrir
Há gente que fica na história
da história da gente
e outras de quem nem o nome
lembramos ouvir
São emoções que dão vida
à saudade que trago
Aquelas que tive contigo
e acabei por perder
Há dias que marcam a alma
e a vida da gente
e aquele em que tu me deixaste
não posso esquecer
A chuva molhava-me o rosto
Gelado e cansado
As ruas que a cidade tinha
Já eu percorrera
Ai... meu choro de moça perdida
gritava à cidade
que o fogo do amor sob chuva
há instantes morrera
A chuva ouviu e calou
meu segredo à cidade
E eis que ela bate no vidro
Trazendo a saudade
As coisas vulgares que há na vida
Não deixam saudades
Só as lembranças que doem
Ou fazem sorrir
Há gente que fica na história
da história da gente
e outras de quem nem o nome
lembramos ouvir
São emoções que dão vida
à saudade que trago
Aquelas que tive contigo
e acabei por perder
Há dias que marcam a alma
e a vida da gente
e aquele em que tu me deixaste
não posso esquecer
A chuva molhava-me o rosto
Gelado e cansado
As ruas que a cidade tinha
Já eu percorrera
Ai... meu choro de moça perdida
gritava à cidade
que o fogo do amor sob chuva
há instantes morrera
A chuva ouviu e calou
meu segredo à cidade
E eis que ela bate no vidro
Trazendo a saudade
© Leonora Fink |
José Saramago - Provavelmente Alegria
Teu corpo de terra e água
Teu corpo de terra e água
Onde a quilha do meu barco
Onde a relha do arado
Abrem rotas e caminho.
Onde a quilha do meu barco
Onde a relha do arado
Abrem rotas e caminho.
Teu ventre de seivas brancas
Tuas rosas paralelas
Tuas colunas teu centro
Teu fogo de verde pinho
Tuas rosas paralelas
Tuas colunas teu centro
Teu fogo de verde pinho
Tua boca verdadeira
Teu destino minha alma
Tua balança de prata
Teus olhos de mel e vinho
Teu destino minha alma
Tua balança de prata
Teus olhos de mel e vinho
Bem que o mundo não seria
Se o nosso amor lhe faltasse
Mas as manhãs que não temos
São nossos lençóis de linho
Se o nosso amor lhe faltasse
Mas as manhãs que não temos
São nossos lençóis de linho
- José Saramago, em "Provavelmente Alegria", 1987.
sexta-feira, 1 de maio de 2015
A menina e o pássaro encantado - Rubem Alves
© Leonora Fink |
A menina e o pássaro encantado - Rubem Alves
Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo.
Ele era um pássaro diferente de todos os demais: Era encantado. Os pássaros comuns, se a porta da gaiola estiver aberta, vão embora para nunca mais voltar.
Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades…
Suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava.
Certa vez, voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão.
“- Menina, eu venho de montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco de encanto que eu vi, como presente para você…”.
E assim ele começava a cantar as canções e as estórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro.
Outra vez voltou vermelho como fogo, penacho dourado na cabeça.
“… Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga.
Minhas penas ficaram como aquele sol e eu trago canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.”
E de novo começavam as estórias.
A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isso voltava sempre.
Mas chegava sempre uma hora de tristeza.
“- Tenho que ir”, ele dizia.
“- Por favor não vá, fico tão triste, terei saudades e vou chorar….”.
“- Eu também terei saudades”, dizia o pássaro. “– Eu também vou chorar.Mas eu vou lhe contar um segredo: As plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios… E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera da volta, que faz com que minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudades. Eu deixarei de ser um pássaro encantado e você deixará de me amar.
Assim ele partiu. A menina sozinha chorava de tristeza à noite, imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa destas noites que ela teve uma ideia malvada.
“- Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá; será meu para sempre. Nunca mais terei saudades, e ficarei feliz”.
Com estes pensamentos comprou uma linda gaiola, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera.
Finalmente ele chegou, maravilhoso, com suas novas cores, com estórias diferentes para contar.
Cansado da viagem, adormeceu.
Foi então que a menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola para que ele nunca mais a abandonasse. E adormeceu feliz.
Foi acordar de madrugada, com um gemido triste do pássaro.
“- Ah! Menina… Que é que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias…”.
Sem a saudade, o amor irá embora…
A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas isto não aconteceu. O tempo ia passando, e o pássaro ia ficando diferente. Caíram suas plumas, os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram- se num cinzento triste. E veio o silêncio; deixou de cantar.
Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava. E de noite ela chorava pensando naquilo que havia feito ao seu amigo…
Até que não mais aguentou.
Abriu a porta da gaiola.
“- Pode ir, pássaro, volte quando quiser…”.
“- Obrigado, menina. É, eu tenho que partir. É preciso partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro da gente. Sempre que você ficar com saudades, eu ficarei mais bonito.
Sempre que eu ficar com saudades, você ficará mais bonita. E você se enfeitará para me esperar…”
E partiu. Voou que voou para lugares distantes. A menina contava os dias, e cada dia que passava a saudade crescia.
“- Que bom, pensava ela, meu pássaro está ficando encantado de novo…”.
E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos; e penteava seus cabelos, colocava flores nos vasos…
“- Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje…
Sem que ela percebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado como o pássaro.
Porque em algum lugar ele deveria estar voando. De algum lugar ele haveria de voltar.
AH! Mundo maravilhoso que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama…
E foi assim que ela, cada noite ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento.
– Quem sabe ele voltará amanhã….
E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.
Ele era um pássaro diferente de todos os demais: Era encantado. Os pássaros comuns, se a porta da gaiola estiver aberta, vão embora para nunca mais voltar.
Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades…
Suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava.
Certa vez, voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão.
“- Menina, eu venho de montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco de encanto que eu vi, como presente para você…”.
E assim ele começava a cantar as canções e as estórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro.
Outra vez voltou vermelho como fogo, penacho dourado na cabeça.
“… Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga.
Minhas penas ficaram como aquele sol e eu trago canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.”
E de novo começavam as estórias.
A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isso voltava sempre.
Mas chegava sempre uma hora de tristeza.
“- Tenho que ir”, ele dizia.
“- Por favor não vá, fico tão triste, terei saudades e vou chorar….”.
“- Eu também terei saudades”, dizia o pássaro. “– Eu também vou chorar.Mas eu vou lhe contar um segredo: As plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios… E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera da volta, que faz com que minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudades. Eu deixarei de ser um pássaro encantado e você deixará de me amar.
Assim ele partiu. A menina sozinha chorava de tristeza à noite, imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa destas noites que ela teve uma ideia malvada.
“- Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá; será meu para sempre. Nunca mais terei saudades, e ficarei feliz”.
Com estes pensamentos comprou uma linda gaiola, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera.
Finalmente ele chegou, maravilhoso, com suas novas cores, com estórias diferentes para contar.
Cansado da viagem, adormeceu.
Foi então que a menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola para que ele nunca mais a abandonasse. E adormeceu feliz.
Foi acordar de madrugada, com um gemido triste do pássaro.
“- Ah! Menina… Que é que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias…”.
Sem a saudade, o amor irá embora…
A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas isto não aconteceu. O tempo ia passando, e o pássaro ia ficando diferente. Caíram suas plumas, os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram- se num cinzento triste. E veio o silêncio; deixou de cantar.
Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava. E de noite ela chorava pensando naquilo que havia feito ao seu amigo…
Até que não mais aguentou.
Abriu a porta da gaiola.
“- Pode ir, pássaro, volte quando quiser…”.
“- Obrigado, menina. É, eu tenho que partir. É preciso partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro da gente. Sempre que você ficar com saudades, eu ficarei mais bonito.
Sempre que eu ficar com saudades, você ficará mais bonita. E você se enfeitará para me esperar…”
E partiu. Voou que voou para lugares distantes. A menina contava os dias, e cada dia que passava a saudade crescia.
“- Que bom, pensava ela, meu pássaro está ficando encantado de novo…”.
E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos; e penteava seus cabelos, colocava flores nos vasos…
“- Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje…
Sem que ela percebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado como o pássaro.
Porque em algum lugar ele deveria estar voando. De algum lugar ele haveria de voltar.
AH! Mundo maravilhoso que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama…
E foi assim que ela, cada noite ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento.
– Quem sabe ele voltará amanhã….
E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.
quinta-feira, 30 de abril de 2015
Mia Couto - em "Raiz de orvalho e outros poemas"
Promessa de uma noite
cruzo as mãos
sobre as montanhas
um rio esvai-se
ao fogo do gesto
que inflamo
a lua eleva-se
na tua fronte
enquanto tacteias a pedra
até ser flor
- Mia Couto, em Raiz de orvalho e outros poemas. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
cruzo as mãos
sobre as montanhas
um rio esvai-se
ao fogo do gesto
que inflamo
a lua eleva-se
na tua fronte
enquanto tacteias a pedra
até ser flor
- Mia Couto, em Raiz de orvalho e outros poemas. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
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